15 de dezembro de 2019

Exhibition


Uma das descobertas mais interessantes do Cinéfilo Preguiçoso em 2019 foi a obra de Joanna Hogg. Todos os filmes desta realizadora inglesa revelam uma grande atenção ao espaço: as paisagens da Toscana em Unrelated (2007) e a natureza agreste das ilhas Scilly de Archipelago (2010), mas também interiores de casas ocupadas temporariamente por grupos de personagens com dinâmicas complexas. Talvez em Exhibition (2013), a sua terceira longa-metragem, esta dimensão seja explorada mais sistematicamente, estudando-se o modo como a relação de um casal de artistas é estruturada por uma casa – um edifício em Kensington desenhado pelo arquitecto James Levine, com algumas transformações, como uma escada em caracol, acrescentadas no fim do século XX. No início do filme, H/Liam Gillick convence a relutante D/Viv Albertine a pôr à venda a casa onde ambos vivem há quase vinte anos. O filme acompanha não só o processo de venda, com toda a agitação que lhe está associada (conversas com agentes imobiliários, discussões com amigos sobre o assunto, algumas visitas de futuros compradores, arrumações para a mudança, festa de despedida), mas também o período em que D começa a preparar uma exposição/performance que implica experimentar várias posições do corpo no seu gabinete de trabalho e noutros espaços da casa. É o terceiro filme em que Joanna Hogg trabalha com o designer de som Jovan Adjer, que desempenha um papel determinante na caracterização do interior do edifício (portas e persianas a serem abertas e fechadas, passos pelos gabinetes e pelas escadas, telefonemas de um piso para o outro), em contraste com o exterior (trânsito, perigo e imprevisibilidade). Um dos motivos de dissensão do casal baseia-se no facto de D se recusar a expor-se e a entregar-se a H, apesar de se expor na sua actividade artística. Visto que a venda da casa parece desencadear uma espécie de libertação ou flexibilização da relação das duas personagens, podemos dizer que o filme propõe que o desejo de mudar de vida às vezes se articula com o desejo de mudar de casa. Como é habitual em Hogg, esta ideia é explorada de forma subtil e formalmente sofisticada, exigindo total atenção por parte do espectador. Apesar de não se aproximar minimamente do registo de um tratado de filosofia, Exhibition seria decerto do agrado de Gaston Bachelard, autor do excelente A Poética do Espaço.

O Cinéfilo Preguiçoso regressará em Janeiro. Boas festas para todos.

8 de dezembro de 2019

A Virgem Desnudada pelos Seus Pretendentes


Os filmes de Hong Sang-Soo recorrem quase invariavelmente à repetição como mecanismo formal, explorado com variantes e modulações subtis. Em relação a outros filmes do mesmo realizador mais conhecidos entre nós, A Virgem Desnudada Pelos Seus Pretendentes (2000), visto recentemente na retrospectiva organizada pela Cinemateca, distingue-se por mostrar de modo mais franco a vertente sexual das relações entre as personagens através do contraste entre desejos femininos e masculinos, mas é difícil (e provavelmente incongruente) escrever sobre os filmes de Hong sem recorrer também à repetição, como o Cinéfilo Preguiçoso tem aprendido à sua custa. A comparação com Rohmer, por exemplo, é uma constante e volta a fazer sentido neste caso. Tal como nos filmes do realizador francês, as personagens de Hong movimentam-se num território ambíguo, onde a intenção e o acaso se confundem, com o que isso implica de ambiguidade moral. Os títulos das duas partes do filme (“Talvez Acidente” e “Talvez Intenção”) sugerem isso de forma explícita. Contudo, tal como nas restantes obras em que Hong recorre à estrutura dual, nada é aquilo que parece: a segunda parte regressa aos acontecimentos da primeira, que giram em torno de uma argumentista disputada pelo realizador que a emprega e por um galerista, mas está longe de ser uma versão alternativa da história que derivaria de uma qualquer escolha de uma personagem. Ambas as partes integram decisões conscientes, impulsos e coincidências, assim como dissonâncias, meias-verdades e pontos de vista alternativos. A cronologia (como costuma acontecer nestes filmes) é fluida e incerta, apesar de o final feliz, anunciado de forma explícita por uma legenda a meio do filme e por um diálogo perto do final, parecer fornecer um ponto de ancoragem temporal – embora pareça arriscado garantir que o encontro amoroso no hotel seja “feliz”, ou sequer “final”. A revisitação dos episódios do enredo, apesar de subverter gentilmente a lógica e a cronologia (ou talvez por isso mesmo), propõe uma perspectiva enriquecedora sobre as motivações, fraquezas e hesitações das personagens. Há poucos realizadores contemporâneos capazes de mostrar a complexidade humana de forma tão engenhosa e com tanta economia de meios. Os homens e as mulheres dos filmes de Hong parecem mais insignificantes do que os heróis trágicos ou aquelas personagens maiores que a vida, cobiçadas por qualquer actor com ambições de ganhar um Óscar; contudo, chegamos ao fim de um filme como este com uma impressão de profundidade nos retratos da natureza humana. As vidas destas personagens banais ganham a legitimidade de matéria de cinema graças à maneira como Hong as retrata: ao sabor da contingência, dos caprichos alheios, das hesitações, sempre em busca da felicidade e fugindo à dor. A retrospectiva Hong Sang-Soo prolongar-se-á até Janeiro.

Outros filmes de Hong Sang-Soo no Cinéfilo Preguiçoso: The Day He Arrives (2011), Haewon e os Homens (2013), Right Now, Wrong Then (2015), On the Beach at Night Alone (2017), O Dia Seguinte (2017).

1 de dezembro de 2019

Maya


O filme Maya, de Mia Hansen-Løve (2018), teve recentemente uma passagem breve pelas salas de cinema, que o Cinéfilo Preguiçoso lamentou ter perdido, mas já está disponível nos videoclubes das operadoras de comunicações. Apesar de ter como protagonista um repórter de guerra francês resgatado depois de ter sido feito refém na Síria, esta sexta longa-metragem de Mia Hansen-Løve não é muito diferente dos outros filmes da realizadora, no seu interesse pela vida quotidiana de personagens que tentam recuperar depois de passarem por um acontecimento doloroso ou marcante. Como outros protagonistas desta realizadora, Gabriel não aprecia dramatismos; em vez de fazer psicanálise ou tentar escrever um livro sobre a experiência, situações em que teria de repisar e remoer o passado, opta por passar uns tempos na Índia, país onde já tinha vivido na infância. Se Maya fosse um texto, teria muitas descrições de espaços e poucos momentos narrativos. Parece, aliás, um filme apostado em contrariar correntes narrativas tradicionais: inicialmente pensa-se que contará uma história sobre os traumas da guerra; depois que será sobre uma viagem de regresso às origens; por fim, julga-se que a história de amor que se começa a esboçar a meio do filme será o mais importante. Nenhuma destas hipóteses se confirma. O grosso de Maya acompanha num registo tranquilo os percursos e as estadias do protagonista, mas evitando os lugares-comuns turísticos, na medida em que prefere prestar atenção ao olhar das personagens. Em Goa, Gabriel conhece Maya, uma rapariga que parece ao mesmo tempo muito jovem e muito antiga, com quem estabelece uma conexão sentimental, apesar de nela haver sempre o impulso para ficar, enquanto ele se caracteriza pela vontade de partir. Pensamos que haverá algum confronto entre estas duas forças, mas o final é calmamente surpreendente. Não conseguimos compreendê-lo imediatamente, mas talvez queira dizer que quando alguma actividade (neste caso, o jornalismo de guerra) interessa realmente a alguém, vai interessar sempre, sobrepondo-se a tudo o resto. Neste filme, é como se Hansen-Løve sugerisse que o cinema não é omnipotente e que, às vezes, o dever do realizador é acompanhar as personagens sem forçar a pretensão de mostrar episódios marcantes e decisivos, limitando-se a sugerir uma transformação interna inacessível a partir do exterior. Esta humildade contrasta agradavelmente com a longa tradição do (mau) cinema que procura equivalentes visuais e narrativos bombásticos para ilustrar a evolução psicológica dos protagonistas.