29 de novembro de 2020

O Nosso Tempo

Visto num canal de televisão de uma operadora de telecomunicações, O Nosso Tempo (2018), de Carlos Reygadas, é mais um filme sobre crises conjugais. Tendo em conta que se trata de um tópico tão abordado no cinema, às vezes em bons filmes, como Viagem em Itália (1954) de Rossellini, ou Cenas da Vida Conjugal (1973) de Ingmar Bergman, seria de esperar que os realizadores pensassem duas vezes antes de lançarem para o mundo mais longas-metragens assentes em diálogos mal escritos que quase se resumem a discussões intermináveis. É possível que Reygadas tenha achado que podia salvar o filme da banalidade situando a acção num rancho, filmando paisagens bonitas, cultivando um ritmo lento, colocando a câmara em ângulos inesperados, abusando do hors-champ, explorando umas metáforas relacionadas com touros, cavalos e masculinidades problemáticas, e assumindo o papel principal com Natalia López, sua mulher, para assim reforçar a dimensão voyeurista do enredo baseado num triângulo amoroso de uma suposta relação aberta. Não foi isso que aconteceu. Em particular, a opção de Reygadas de (pela primeira vez na sua carreira) passar para o outro lado da câmara tem resultados desastrosos: falta-lhe o talento de actor de Buster Keaton ou Woody Allen e carece da presença e do carisma necessários para construir uma persona que compense a escassez de dotes dramáticos, ao contrário do que acontece, por exemplo, com Nanni Moretti. Às vezes, um realizador que seguimos com algum interesse, mas que ainda não nos convenceu plenamente, faz um filme que lança uma luz desfavorável sobre toda a sua obra anterior. O Nosso Tempo é um desses filmes em que compreendemos que tudo aquilo que antes achávamos interessante na obra do seu realizador afinal era pretensioso, gratuito, superficial e infantilóide. Enquanto a memória de alguns momentos deste filme (discussões sobre telemóveis, lutas de touros, delírios egocêntricos do protagonista) se mantiver bem viva, será difícil o Cinéfilo Preguiçoso voltar a ver um filme de Reygadas. Como O Nosso Tempo dura três horas, os maus momentos são não só penosos mas também numerosos, pelo que não serão fáceis de esquecer.

22 de novembro de 2020

O Sal das Lágrimas

O Sal das Lágrimas (Philippe Garrel, 2020), já disponível no videoclube das operadoras de telecomunicações, tem algumas características em comum com obras anteriores deste realizador: mantêm-se o tema (a volatilidade das relações sentimentais), a estética despojada e alguns dos colaboradores habituais (Renato Berta na fotografia, Jean-Louis Aubert na música, Jean-Claude Carrière e Arlette Langmann no argumento). Destacam-se, contudo, alguns aspectos novos ou menos importantes em filmes anteriores. Por exemplo, a relação entre o protagonista, um jovem aprendiz de marceneiro (Logann Antuofermo) e o pai (grande papel de André Wilms, protagonista habitual dos filmes de Kaurismäki) é singular: por um lado, há uma grande proximidade entre os dois e o desejo, da parte do filho, de seguir as pisadas do pai, também ele marceneiro; por outro, sente-se um desejo inconsciente de rejeição da influência e dos conselhos paternos. Neste híbrido de cumplicidade e anseio de emancipação reside a principal linha condutora do filme. Ao contrário do que sucede na esmagadora maioria dos filmes que abordam o amor e as relações conjugais entre jovens, em O Sal das Lágrimas as derivas do protagonista, ao sabor das suas inseguranças e escolhas de vida e dos encontros com as mulheres que com ele se cruzam, não configuram um percurso de aprendizagem: não há evolução, não há crescimento, não há a certeza reconfortante de que o sofrimento é o preço a pagar pela sabedoria. Garrel mostra-nos este percurso de forma esparsa, acelerando o tempo da narrativa e inserindo hiatos cada vez maiores à medida que se sucedem os encontros e abandonos, mas permitindo-se pequenas peculiaridades estilísticas que surpreendem o espectador. Dois exemplos: a abundância de cenas (por vezes bastante incongruentes ou inesperadas) passadas em casas-de-banho, espaços íntimos cujo carácter privado se dilui graças a um jogo engenhoso de planos e portas ou janelas escancaradas, lembrando Bonnard; o recurso à voz-off, por vezes redundante em relação à acção, que parece ter como único objectivo reforçar a presença de um narrador, com o seu ponto de vista e o seu olhar, neutro mas cheio de melancolia, sobre os eventos da vida das personagens. Philippe Garrel chegou a uma fase da sua carreira em que já não se esperam revoluções na sua maneira de trabalhar, seja ao nível da forma ou dos temas, mas é muito interessante ir apreciando como, dentro desta matriz, cada novo filme se distingue dos anteriores graças a pormenores mínimos ou subtilezas na abordagem.
 
Outros filmes de Philippe Garrel no Cinéfilo Preguiçoso: O Amante de Um Dia (2017), L'Ombre des Femmes (2015).

15 de novembro de 2020

Sibyl | About Last Night

Embora continuando ansiosamente à espera de tempos menos loucos para quem gosta de ir ao cinema, o Cinéfilo Preguiçoso tem estado atento aos filmes que vão passando na televisão. Tinha lido uns comentários interessantes sobre Sibyl, a terceira longa-metragem de ficção da realizadora francesa Justine Triet (2019), por isso aproveitou para ver este filme quando passou num dos canais de cinema de uma operadora de telecomunicações. Em Sibyl acompanhamos a história de uma psicanalista (Virginie Efira) que, dez anos depois de abandonar uma carreira de sucesso enquanto escritora, decide voltar a escrever. Por si só, este ponto de partida daria pano para mangas, mas é sobrecarregado não só por flashbacks do passado da protagonista, que inclui alcoolismo e um desgosto amoroso, mas também pelas suas relações problemáticas com a mãe, a irmã, as duas filhas, o companheiro actual e alguns pacientes. Como se isto não bastasse, há também uma identificação dúbia entre a psicanalista e uma paciente que é actriz e que a convence a viajar para Stromboli para colaborar num filme. Sibyl tenta ser um filme sobre: as complexidades da psicanálise e das relações entre mãe e filhos e psicanalista e pacientes; os paralelos entre ser escritora, psicanalista e realizadora; a tragicomédia da realização de um filme; e as desventuras do meio editorial. A partir desta descrição, facilmente se conclui que, apesar de o espectador nunca se aborrecer com Sibyl, seria possível fazer várias longas-metragens melhores com uma só destas ideias de base. Em certos aspectos, nomeadamente na oscilação entre o drama e a comédia e na maneira como a escrita e a vida se alimentam mutuamente, Sibyl lembra o cinema de François Ozon, mas sem nunca encontrar um tom unificador capaz de equilibrar as suas diferentes dimensões. Outro filme visto esta semana na televisão foi About Last Night (Edward Zwick, 1986), essa referência mítica das revistas para adolescentes dos anos oitenta. Mesmo sem nunca o ter visto, o Cinéfilo Preguiçoso sabia bem que o filme é protagonizado por duas figuras importantes do chamado Brat Pack – Rob Lowe e Demi Moore em início de carreira –, mas não suspeitava que se baseava numa peça de 1974 do grande David Mamet, intitulada Sexual Perversity in Chicago. Apesar de ser um péssimo filme, que pouco deve ter guardado da peça de Mamet, About Last Night tem tantas características típicas dos anos oitenta, sobretudo a estética do videoclip, que acaba por ter alguma piada vê-lo. Esperemos que algum canal de televisão se lembre de passar St. Elmo’s Fire (Joel Schumacher, 1985) em breve.

8 de novembro de 2020

Cinema Português?

O Cinéfilo Preguiçoso continua a descobrir a extensa filmografia de Manuel Mozos no campo dos documentários. Visto no videoclube de uma operadora de telecomunicações, Cinema Português? (1997) consiste numa conversa de Mozos com João Bénard da Costa, complementada com imagens de filmes portugueses. O registo é semelhante ao de Lisboa no Cinema – Um Ponto de Vista (1994), que alterna entrevistas com imagens montadas de maneira a reforçar, exemplificar ou prolongar as ideias expostas pelos entrevistados. Em ambos os filmes, fiel à sua maneira de entender o documentário, Mozos abstém-se de impor um ponto de vista teorizante ou didáctico, mas a escolha das imagens e o seu ordenamento revelam um esforço de reflexão que enriquece o filme e o subtrai à condição de mera sucessão de depoimentos alheios. Uma das linhas fundamentais de Cinema Português? é uma tentativa de resposta ao lugar-comum segundo o qual “o cinema português não existe”. Na opinião de Bénard da Costa, apesar de os filmes portugueses terem sido realizados ao sabor de escolas e movimentos efémeros, fortemente condicionados pelas afinidades políticas e culturais de cineastas e produtores, o resultado é um corpo filmográfico com características únicas, a tal ponto que seria possível reconstruir a realidade cultural portuguesa apenas a partir do cinema, na hipótese de um evento apocalíptico que apagasse todos os restantes vestígios do que se fez no país. Os excertos que são mostrados (infelizmente, só identificados no final – talvez tentando evitar que o espectador se concentre em cronologias e nomes, mas uma opção frustrante) ilustram as intervenções de Bénard da Costa, complementando-as ou usando-as como ponto de partida para raccords ou paralelos entre filmes de épocas e géneros muito diferentes. Há momentos deliciosos: por exemplo, pouco depois de Bénard da Costa manifestar o apreço pelo lado quase amador de alguns filmes portugueses, a propósito de uma cena de Maria do Mar (Leitão de Barros, 1930), vê-se obrigado a retirar o microfone para repreender um cão que não pára de ladrar, deixando à vista os mecanismos do cinema e o seu lado artesanal. Cinema Português? não funciona como reflexão profunda, nem o seu formato e duração o propiciariam: um ambiente de conversa informal é pouco compatível com a elaboração de um discurso com uma riqueza comparável à da obra escrita de Bénard da Costa. É um filme que se confina, e bem, à missão de explorar algumas ideias por meio da fricção entre palavra e imagem, sem pretensões de abrangência ou sistematização.
 
Outros filmes de Manuel Mozos no Cinéfilo Preguiçoso: Lisboa no Cinema - Um Ponto de Vista (1994), Ramiro (2017), Sophia, na Primeira Pessoa (2019).

1 de novembro de 2020

A Garra Vermelha

Depois de ver La morte rouge (Víctor Erice, 2006), o Cinéfilo Preguiçoso procurou A Garra Vermelha/The Scarlet Claw (Roy William Neill, 1944), o filme que inspirou esta curta-metragem, e encontrou-o no YouTube, com qualidade de imagem razoável. A Garra Vermelha foi o oitavo de uma série de catorze filmes de aventuras de Sherlock Holmes protagonizados por Basil Rathbone e Nigel Bruce (enquanto Watson). O enredo gira em torno do que se supõe ser uma força misteriosa que mata animais e pessoas com um instrumento em forma de garra. Não se baseia directamente num texto de Conan Doyle, embora tenha alguns elementos em comum com O Cão dos Baskervilles (o cenário  dos pântanos, um monstro supostamente fluorescente, um criminoso à solta, a discussão sobre a distinção entre o sobrenatural, por um lado, e os factos e a lógica, por outro, etc.). Quem, como o Cinéfilo Preguiçoso, esteja familiarizado com a série protagonizada por Jeremy Brett poderá achar o Sherlock Holmes de Basil Rathbone menos carismático e decepcionantemente menos cabotino, sobretudo por causa dos diálogos, que são mais contidos e menos arrogantes. A personagem de Watson, aqui transformada numa espécie de bobo da corte, tem também pouco a ver quer com os livros de Conan Doyle, quer com adaptações televisivas e cinematográficas mais recentes. O filme em si, no entanto, é interessante, não só pela atmosfera misteriosa e concentracionária do espaço em que a acção decorre, entre pântanos e nevoeiros, mas também por explorar uma dimensão metadramática e metacinematográfica relacionada com o facto de quase todas as personagens assumirem um disfarce para se desligarem de certos acontecimentos do seu passado, incluindo alguns actores afastados da profissão que encarnam diferentes identidades sem ninguém saber. Além disso, todos os suspeitos são semelhantes fisicamente e, a dada altura, o próprio Sherlock Holmes assume um disfarce para se confundir com um deles. O início de A Garra Vermelha é um dos seus melhores momentos: na sala de convívio de uma pousada, todas as personagens estão imóveis, escutando o toque sinistro dos sinos de uma igreja; de repente, entra o carteiro Potts, que traz com ele as palavras e o movimento – como o cinema faz em relação às imagens. No fim de A Garra Vermelha, uma citação inesperada de Winston Churchill sobre a importância estratégica do Canadá, onde a acção se desenrola, recorda que este filme foi realizado e exibido durante a Segunda Guerra Mundial. Como Erice explica em La morte rouge, os espectadores da época associariam inevitavelmente a força maléfica e o terror do enredo à atmosfera desta guerra. Quanto ao próprio Erice, que na altura teria cinco ou seis anos e via um filme no cinema pela primeira vez, concluiu que a imobilidade dos espectadores no escuro da sala era determinada pela mesma força maléfica misteriosa no ecrã. Por esse motivo, a partir daí, nunca mais conseguiu dissociar o cinema desse medo e dessa inquietação. E é assim que uma aventura de Sherlock Holmes pode ser descrita não só como reflexão sobre a guerra e determinado período histórico, mas também como reflexão sobre os actos de fazer e ver filmes.