25 de abril de 2021

Undine

O Cinéfilo Preguiçoso aproveitou o primeiro dia de reabertura das salas de cinema para ver Undine (2020), de Christian Petzold. Os primeiros quinze ou vinte minutos deste filme, culminando com a extraordinária cena da desintegração do aquário, são excelentes: a tensão entre o realismo e as primeiras sugestões de elementos sobrenaturais ou míticos é intrigante e muito bem conseguida. A partir daí, instala-se a sensação de que Petzold não foi capaz de transformar a ideia inicial numa longa-metragem ao nível das suas obras anteriores. A dualidade que caracteriza o filme e a personagem principal, entre a realidade da Berlim contemporânea e o mito, acaba por se reduzir à condição de estratagema narrativo, deixando o espectador na dúvida sobre se o realizador pretendeu usá-la como metáfora de alguma ideia mais geral e abstracta, ou simplesmente como elemento lírico. Por outro lado, o contraste entre as cenas subaquáticas e as alusões ao urbanismo, entre a imensidão misteriosa do lago e a realidade nomeável e ordenada da cidade, é poderoso e funciona como linha orientadora e estruturante de todo o filme. Abundam as alusões cinéfilas: as aparições debaixo de água fazem lembrar L’Atalante (1934), de Jean Vigo, e é impossível não pensar em O Intendente Sansho (1954), de Mizoguchi na cena em que Undine mergulha pela última vez no lago. Entre estas homenagens visuais e os vários níveis que a narrativa explora, perdeu-se algo daquilo que caracteriza a filmografia de Petzold e que é evidente em filmes como Yella (2007) ou Phoenix (2014): a intensidade, a coerência e a economia narrativa. O argumento de Undine baseia-se num conto de Ingeborg Bachmann, por sua vez inspirado na lenda tradicional de Ondina, e é, ao que consta, o primeiro filme de uma trilogia sobre mitos. Espera-se que Petzold seja capaz de injectar mais do seu estilo e da sua personalidade artística nos próximos segmentos.
 
Outros filmes de Christian Petzold no Cinéfilo Preguiçoso: Wolfsburg (2003); Fantasmas (2005); Yella (2007); Barbara (2012); Phoenix (2014); Em Trânsito (2018).
 

18 de abril de 2021

Misery

Gravado num canal de televisão, Misery/O Capítulo Final (1990), de Rob Reiner, adapta um romance de 1987 de Stephen King com o mesmo título, que tem como protagonista um autor de romances cor-de-rosa (Paul Sheldon/James Caan) sequestrado pela sua «fã número um» (Annie Wilkes/Kathy Bates) depois de um acidente de carro na neve. Reza a história que o papel de protagonista foi proposto a vários actores conhecidos (como William Hurt, Robert de Niro, Gene Hackman e Al Pacino), que o recusaram, talvez por se tratar de uma figura masculina totalmente controlada por uma figura feminina. Em Stand by Me/Conta Comigo (1986), Rob Reiner já tinha adaptado Stephen King, num excelente filme, que o autor considera a melhor adaptação cinematográfica de um livro seu. Misery não é um filme tão bom. Enquanto o romance de King é escorreito e consegue evocar uma dimensão de terror psicológico que pode ser associada ao medo de escrever para um público e de ser lido, o filme de Rob Reiner tem alguns momentos de gosto duvidoso, como a sanguinolenta luta final entre Annie e Paul, completamente dispensável. É inevitável fazermos uma comparação com The Shining (Stanley Kubrick, 1980): ambos giram em torno de escritores que vão escrever para lugares isolados pela neve no meio de nenhures e a quem acontecem coisas más. Por muito que Stephen King diga que não gosta do filme de Kubrick, em The Shining os momentos de terror assustam e intrigam permanentemente o espectador. Pelo contrário, no filme de Rob Reiner há situações que geram algum distanciamento e vontade de rir. Em contraste absoluto com a elegância urbana da agente do escritor (interpretada por Lauren Bacall), Kathy Bates (na altura uma desconhecida, mas que recebeu o Óscar para melhor actriz por este filme) explora eximiamente os extremos da inocência e da simpatia, por um lado, e da fúria assassina dos leitores que se sentem defraudados por um livro, por outro, mas a interpretação talvez ganhasse em acrescentar mais ambiguidade a estes dois extremos. Apesar de não ser muito subtil, Misery é um filme com algum interesse. A tirania do leitor em relação ao escritor preferido gera algumas situações e imagens em que ficamos a pensar: os dois livros (sem cópias) que são queimados; a máquina de escrever sem a letra N que depois serve de arma de arremesso; a pasta de cabedal, gasta pelo uso, em que o escritor transportou o primeiro romance; o telefone sem ligação ao exterior; a sugestão de que um escritor é comparável a alguém com as pernas partidas que está impedido de sair de casa e se vê obrigado a continuar a escrever. Curiosamente, a personagem do xerife (interpretada pelo veterano Richard Farnsworth, futuro protagonista de Uma História Simples, de David Lynch, 1999) que, com uma mistura de sagacidade e vagar, tenta descobrir o paradeiro do escritor, é parecida com as personagens de Frances McDormand e Tommy Lee Jones nos filmes dos irmãos Coen Fargo (1996) e No Country For Old Men (2007). Apesar de ser muito diferente de When Harry Met Sally…/Um Amor Inevitável (1989), a (excelente) comédia romântica que Rob Reiner realizou imediatamente antes, Misery também foi um êxito de bilheteira.

11 de abril de 2021

Os Amantes

Tal como sucedera na longa-metragem de estreia de Louis Malle (Ascenseur pour l’Échafaud/Ascensor para o Cadafalso, de 1957), a segunda, Os Amantes (1958), vista esta semana em DVD, tem como elemento central um triângulo formado por um casal e pelo amante da mulher (Jeanne Moreau, em ambos os casos). As semelhanças, porém, ficam-se por aqui. Enquanto Ascenseur pour l’Échafaud/Ascensor para o Cadafalso é um thriller caracterizado pela contenção formal, Os Amantes é um objecto desconcertante que se diria uma resposta a um hipotético desafio de fazer três filmes num só. A primeira parte é realista e passa-se entre Dijon, onde vivem Henri (Alain Cuny) e Jeanne (Jeanne Moreau), e Paris, onde Jeanne se encontra regularmente com um amante, explorando-se um contraste entre o campo e a cidade. O segmento intermédio, que consiste num percurso de carro, bastante acidentado, que Jeanne faz entre Paris e Dijon, onde se prepara um jantar em que participarão o casal, o amante e a melhor amiga de Jeanne, é um mini-road movie rico em efeitos burlescos. A parte final, que abrange o jantar e a noite que se segue, começa num tom de denúncia irónica das hipocrisias da sociedade burguesa, para, durante a madrugada, derivar subitamente para um registo lírico e onírico que coincide com a aproximação entre Jeanne e o homem que lhe tinha dado boleia quando o seu carro se avariara durante o trajecto Paris-Dijon, e que acabara por ficar para o jantar. Parece crível que Malle e a argumentista Louise de Vilmorin tenham pretendido retratar uma mulher que procura a felicidade em vão junto de um marido distante e de um amante frívolo, e que a encontra com um desconhecido que o acaso coloca no seu caminho, mas esta intenção soçobra em face das inconsistências formais do filme. Os Amantes é uma obra curiosa que contém momentos conseguidos e se vê com agrado, apesar das suas fragilidades, consequência de uma desenvoltura formal a que não será alheio o espírito da Nouvelle Vague que nesta época despontava. Perante a invulgar versatilidade da filmografia de Malle, que vai do humor delirante de Zazie no Metro (1960) à encenação de uma conversa prandial sobre a vida e o teatro (My Dinner With Andre, 1981), é tentador ver neste filme o trabalho de um cineasta ansioso por experimentar estilos e abordagens diferentes. Terminemos com duas notas. Da ficha técnica, além do director de fotografia Henri Decaë (que trabalhou muitas vezes com Jean-Pierre Melville e que filmaria Os 400 Golpes, de Truffaut, no ano seguinte), consta um jovem Alain Cavalier como assistente de realização. Os Amantes esteve no centro de uma decisão judicial que fez jurisprudência: o Supremo Tribunal dos E.U.A. considerou que o filme não era obsceno, depois de o dono de um cinema do Ohio ter decidido projectar o filme apesar da interdição que lhe tinha sido aplicada.