26 de setembro de 2021

O Veredicto

O Cinéfilo Preguiçoso continua interessado em explorar o cinema norte-americano dos anos 70 e a filmografia de Sidney Lumet. O Veredicto (1982), apesar de já ter sido realizado nos anos 80, remete até certo ponto para a década anterior, marcada pela desconfiança nas instituições e por um clima opressivo de corrupção e podridão moral, bem visíveis em Network (Sidney Lumet, 1976), sobre o qual já escrevemos. A euforia dos anos Reagan não se vislumbra neste filme. Baseado no romance com o mesmo título de Barry Reed, O Veredicto descreve um processo judicial de negligência médica defendido por Frank Galvin (Paul Newman), um advogado alcoólico caído em desgraça que, contra a opinião de todos, opta por levar o caso a julgamento em vez de aceitar a indemnização avultada que o hospital oferece aos queixosos. Assim, encontramos neste filme temas e situações que o cinema norte-americano explorou até à exaustão, antes e depois: o indivíduo que sofreu um revés profissional e pessoal grave, mas que se esforça por se redimir; a luta dos pequenos contra os poderosos (um advogado sozinho que defende cidadãos comuns contra a enorme equipa legal que representa uma instituição importante); o filme de tribunal. Recorde-se, aliás, que Lumet começou a carreira de realizador com 12 Homens em Fúria (1957), um filme de tribunal que girava em torno do júri, ao contrário de O Veredicto, que privilegia a descrição das complexas relações de poder e dependência entre advogados, testemunhas e juiz. Apesar de não se distinguir pela originalidade temática, O Veredicto é um filme intenso e cativante, graças à coerência e força do argumento de David Mamet (na altura conhecido essencialmente como dramaturgo), à solidez e competência do elenco, que inclui ainda James Mason e Charlotte Rampling, além de Jack Warden (um dos numerosos excelentes actores secundários sem os quais a história de Hollywood seria bem diferente) e, claro, à realização segura e inteligente de Lumet. A direcção de fotografia (de Andrzej Bartkowiak) e os cenários, que se diriam kafkianos pela maneira como realçam a desproporção entre os edifícios colossais onde se pratica a Justiça e a insignificância das pessoas que os povoam, criam uma dimensão quase fantástica que enriquece o conteúdo humano do filme, em vez de o diluir. O Veredicto foi nomeado para cinco Óscares, mas não ganhou nenhum. 1982 foi o ano de E.T., Tootsie e Gandhi, que venceu na categoria de Melhor Filme. Antes e depois de 1982, foram galardoadas obras bem mais fracas do que este filme de Lumet, o que dá que pensar sobre os critérios que presidem à atribuição destes prémios americanos.
 

Outros filmes com realização ou argumento de David Mamet: House of Games (real. David Mamet, 1987); Glengarry Glen Ross (real. James Foley, 1992); The Spanish Prisoner (real. David Mamet, 1997).

19 de setembro de 2021

Acidente

Entre os filmes de Joseph Losey que a RTP passou recentemente, o Cinéfilo Preguiçoso ainda tinha guardado no arquivo Acidente, de 1967. Este filme baseia-se num romance de Nicholas Mosley (1923-2017) com o mesmo título, adaptado por Harold Pinter na sua terceira colaboração (de quatro) com Losey. As outras foram em O Criado (1963), Modesty Blaise (1966) e The Go-Between (1971). A título de curiosidade, saliente-se que tanto Pinter como Mosley têm breves aparições como actores em Acidente. Enquanto o romance de Mosley assenta num relato na primeira pessoa por associação livre, o argumento de Pinter não só não privilegia uma perspectiva de primeira pessoa como também ignora as explicações das motivações psicológicas do protagonista. Deste modo, à superfície, o filme tem um enredo que explora inicialmente um triângulo amoroso que depois se transforma num quadrado, mas os espectadores percebem que as atracções entre as personagens não se processam exclusivamente entre os pólos masculino e feminino, mas também entre as personagens masculinas. Um resumo breve do enredo seria assim: Stephen (Dirk Bogarde), um professor de Oxford casado e à espera do terceiro filho, envolve-se com dois alunos: William (Michael York) e Anna (Jacqueline Sassard). Entretanto, Charley (Stanley Baker, que desempenhou o papel de protagonista em Eva), colega de Stephen em Oxford, também se envolve com Anna. O filme começa com um acidente de automóvel em que William morre, voltando depois ao início da história, mas apoiando-se numa cronologia fluida, que nem sempre nos permite perceber o que aconteceu antes ou depois. No fim, ouve-se outra vez o ruído de um acidente, o que sugere que estamos todos, espectadores e personagens, presos numa narrativa circular de que não conseguimos sair. Sem a manipulação explicativa de primeira pessoa, a personagem feminina parece funcionar como uma espécie de lugar seguro para a atracção e as tensões entre os homens se expressarem. Anna, aliás, tem um comportamento muito parecido com o do próprio protagonista, na medida em que se relaciona com vários homens sem nunca demonstrar grande ligação com eles, tal como o protagonista se relaciona com várias mulheres sem demonstrar afecto por elas. Poderíamos até considerá-la um duplo do protagonista. Os numerosos enquadramentos através de portas e janelas sugerem que as próprias personagens estão sempre a representar. A composição dos planos de Losey obriga os espectadores a estarem concentrados, para perceberem, entre tantos elementos presentes, a quais devem prestar mais atenção. Os diálogos de Pinter são tão lacónicos e concisos que quase impõem a necessidade de se reflectir sobre eles para se confirmar se algum significado importante não terá escapado. Uma das sequências mais interessantes do filme – a da tarde passada no jardim da casa de Stephen, com todas as personagens na relva – terá depois uma espécie de desenvolvimento no filme Providence (1977), de Alain Resnais, em que Dirk Bogarde também participa como actor. No filme de Resnais, a sugestão de que o enredo era fruto da imaginação de um escritor (John Gielgud) era muito explícita. Em Acidente, isso não passa de uma sugestão fugaz: durante essa tarde de convívio, Charley, que está a escrever um romance, comenta qualquer coisa como: “Escrever ficção é fácil. Por exemplo, olhando para as pessoas aqui presentes, bastaria descrevermos as histórias de que são personagens.” Pouco depois, no mesmo dia, passeando com Anna no bosque adjacente à casa, Stephen recomenda: “Cuidado com essa teia de aranha.” É isso que Losey e Pinter fazem em O Acidente: chamam a atenção para as teias de aranha em que as pessoas estão presas e que as obrigam a representar.

12 de setembro de 2021

Happy Hour


O Cinéfilo Preguiçoso aprecia a brevidade e não consegue evitar um certo cepticismo prévio em relação a filmes muito longos, embora a lentidão e a exploração do tempo sejam estratégias válidas e não forçosamente fruto da megalomania e complacência dos realizadores. O filme desta semana, visto na RTP 2, é Happy Hour (2015), de Ryusuke Hamaguchi. A duração (quase cinco horas e meia) impôs uma divisão em três partes que já tinha sido adoptada aquando da estreia em sala e que parece um tanto arbitrária: o filme é interrompido na transição de uma cena para outra, sem motivo aparente para que o corte ocorra naquele momento. O enredo centra-se num quarteto de amigas na casa dos 30 anos, residentes em Kobe, no Japão, no processo de divórcio traumatizante que uma delas está a atravessar e nos efeitos que este tem sobre as outras personagens e as suas relações. Há ainda uma personagem, Ukai, que começa por ser secundária, mas desempenha um papel central. Ukai é um artista que trabalha com objectos em equilíbrio precário que acabam por ser derrubados pelo vento ou outro fenómeno meteorológico. Esta prática pode ser vista como uma metáfora das relações das personagens: aparentemente estáveis, mas à mercê de abalos que, apesar de parecerem débeis, têm potencial para provocar estragos. O curso que Ukai ministra, em que tenta transmitir o seu dom a outras pessoas, é um dos momentos em que o tempo da acção é esticado muito para lá daquilo que as convenções cinematográficas costumam ditar. Parece que nada se passa, mas, como noutros momentos longos deste filme (por exemplo, na sessão de leitura integral de um conto pela autora, uma jovem escritora de sucesso que acaba por causar a ruptura de uma das protagonistas com o companheiro), existe uma profusão de pequenos acontecimentos, gestos e olhares com uma importância para a evolução das personagens que se torna clara mais tarde. A dilatação do tempo e o tom de improvisação fazem lembrar Jacques Rivette, mas Cassavetes e Bilge Ceylan são outras influências verosímeis, pela maneira como as conversas se prolongam até um ponto em que as personagens revelam algo de si mesmas para lá da dimensão verbal. Não se pode dizer que Happy Hour seja um filme isento de problemas: a atonia emocional de algumas personagens masculinas retira impacto dramático à parte final, e estranha-se a mania de filmar os actores em contraluz. Ainda assim, é um filme intenso, cativante e ambicioso, bem mais satisfatório do que o algo superficial Asako I & II (realizado imediatamente depois, estreado em 2018). O LEFFEST 2021 exibirá dois filmes de Hamaguchi inéditos em Portugal – Wheel of Fortune and Fantasy (2021) e Drive My Car (2021) – no âmbito de uma retrospectiva dedicada ao realizador. Será uma boa oportunidade para conhecermos melhor a sua obra.

5 de setembro de 2021

O Segredo da Câmara Escura | First Cow

Um dos prazeres dos cinéfilos que as pandemias e plataformas de streaming prejudicam gravemente é a surpresa de encontrar filmes interessantes em sítios ou horários ligeiramente inesperados. Foi o que aconteceu recentemente ao Cinéfilo Preguiçoso. O Segredo da Câmara Escura (Kiyoshi Kurosawa, 2016) escapava-lhe desde 2016, mas num dia destes passou nada mais, nada menos do que na CMTV. Por sua vez, First Cow (Kelly Reichardt, 2019) estreou há alguns meses em Portugal, mas foi só numa sessão do Nimas ao meio-dia num domingo que o Cinéfilo Preguiçoso o conseguiu ver. Em O Segredo da Câmara Escura conta-se a história de um fotógrafo de moda famoso, mas obcecado com a morte da mulher, que usa a filha como modelo para criar daguerreótipos, uma técnica antiga que obriga quem é fotografado a ficar imóvel durante muito tempo. O filme oscila entre duas dimensões que nunca consegue harmonizar eficazmente. Por um lado, temos uma atmosfera próxima do filme de terror, género a que o realizador está bem habituado, com uma casa decrépita e labiríntica, um estúdio de fotografia sombrio, uma estufa antiga, vultos estranhos percorrendo os espaços, mentiras, coexistência de mortos e vivos; por outro, cultiva-se um registo realista, com um drama em que intervêm consultores imobiliários que querem comprar a mansão do fotógrafo. É um filme frio, que parece incapaz de penetrar e explorar não só o ardor das personagens mas também a ideia de eternidade que estas pretendem alcançar através das imagens. Quanto a First Cow, baseado no romance The Half-Life, de Jonathan Raymond, explora um episódio em torno da primeira vaca transportada para a região do Oregon, na década de 1820, a pedido de um chefe de entreposto inglês que sentia falta de leite no chá. Narrado em tom aparentemente menor, este fait-divers é o ponto de partida para um estudo do período de exploração do Oeste americano. Esta época costuma ser descrita em tom épico e heróico, mas Reichardt não cai nessa armadilha e prefere prestar atenção a anti-heróis, personagens supostamente insignificantes que se esforçam por sobreviver entre o caos, as terras inóspitas e a ganância e violência humanas. Alguns críticos chamaram a atenção para os paralelos que é possível traçar entre a sociedade retratada no filme, onde não existe uma verdadeira noção de comunidade e as pessoas protegem apenas os seus interesses individuais, e a sociedade americana contemporânea. A colaboração entre Reichardt e Raymond, como argumentista ou autor de textos adaptados pela realizadora, tem sido uma constante, dando origem a filmes como Old Joy (2006), Wendy and Lucy (2008), O Atalho (2010) e Night Moves (2013). A atenção à natureza, o ritmo lento e o tom menor de First Cow aproximam-no bastante de Old Joy, talvez o seu melhor filme, sendo também três das características que distinguem e tornam única a obra de Reichardt, sobretudo dentro do cinema americano, mas também fora dele. Por estes motivos, First Cow é uma experiência cinematográfica invulgar, apesar de ter alguns pontos fracos, como uma dimensão narrativa demasiado ilustrativa e o carácter rudimentar e grosseiro da maior parte das personagens. Um factóide, para terminar: este é o trecentésimo post do Cinéfilo Preguiçoso; de modo algum desperdiçaríamos a oportunidade de usar este numeral ordinal tão injustamente ignorado por aí.

Ler também: Certain Women (Kelly Reichardt, 2016).