31 de outubro de 2021

A Ilha de Bergman

Visto no cinema, A Ilha de Bergman (2021), de Mia Hansen-Løve, é um filme sobre as dificuldades práticas de ter uma vocação: os protagonistas são dois realizadores que vivem juntos e têm de gerir o trabalho artístico no quotidiano. Encontramos a influência de Bergman não só no espaço onde a acção principal decorre (os protagonistas passam uma temporada na ilha de Fårö), mas também na atenção ao tema das relações conjugais – há mesmo uma cena filmada na cama de Cenas da Vida Conjugal (descrito como o filme que provocou o divórcio de milhões de casais). A realizadora explicou, no entanto, que a maior influência de Bergman neste filme é indirecta e tem que ver com a originalidade e a independência da obra do realizador sueco, que fez os filmes que quis sem qualquer preocupação comercial e sabendo muitas vezes que abordava temas desagradáveis e que podiam afastar o público. Também Mia Hansen-Løve se caracteriza pelo mesmo espírito independente, insistindo em fazer filmes intensamente pessoais, que, na medida em que não incluem determinados parâmetros do cinema mais convencional, como um enredo delineado com simplicidade e fácil de narrar, correm abertamente o risco de serem desinteressantes para os espectadores que preferem histórias bem contadas. Convém, no entanto, notar que, ao contrário do que acontece em muitos filmes de Bergman, esta realizadora não trabalha só a escuridão das relações humanas; procura sempre uma espécie de luz e de esclarecimento no seu cinema. Os seus filmes são pessoais também por partirem sempre de uma inspiração autobiográfica, trabalhada indirectamente. Em A Ilha de Bergman há vários elementos que sugerem esse processo, os menores dos quais não serão, por um lado, a semelhança física (e até  de voz e pronúncia) entre a actriz principal (Vicky Krieps) e a realizadora e, por outro, o facto de também Mia Hansen-Løve ser casada com um realizador (Olivier Assayas) na «vida real». Outro elemento associado ao processo de criação cinematográfica é o filme dentro do filme. Intitulado “The White Dress”, o filme que a personagem da realizadora descreve trabalha de outro ângulo a ambivalência em relação ao casamento que é explorada no filme principal; tem como protagonista mais uma realizadora; em alguns momentos é invadido por personagens do filme principal; e chega a recuperar um diálogo de Um Amor de Juventude (Mia Hansen-Løve, 2011), como se as suas personagens principais viessem desse filme (e a realizadora até pensou em dar-lhes os mesmos nomes das personagens de Um Amor de Juventude), que a própria Mia Hansen-Løve já explicou que conta a história de como se tornou realizadora: tal como a protagonista desse filme (que é arquitecta), também ela encontrou a sua vocação depois de um desgosto amoroso, aplicando ao trabalho as energias que antes tinha dedicado ao amor. Por todos estes motivos, A Ilha de Bergman é um filme essencialmente metacinematográfico, que pode ser usado como chave para toda a obra de Mia Hansen-Løve. Talvez por causa desta dimensão, e pela saturação de níveis de significado e pistas autobiográficas, parece menos orgânico, mais forçado e menos fluido do que outros da mesma cineasta, cuja obra, não obstante, continua a ser das mais interessantes que o cinema contemporâneo vem produzindo.

Outros filmes de Mia Hansen-Løve no Cinéfilo Preguiçoso: Éden (2014); L’Avenir (2016); Maya (2018).

24 de outubro de 2021

As Coisas que Dizemos, as Coisas que Fazemos

Há muito tempo que o Cinéfilo Preguiçoso segue a carreira do realizador e actor francês Emmanuel Mouret, e por isso claro que aproveitou a oportunidade de ver a sua longa-metragem mais recente na Festa do Cinema Francês deste ano. O enredo de As Coisas que Dizemos, as Coisas que Fazemos (2020) assenta nas histórias contadas por um homem e uma mulher, para passarem o tempo enquanto esperam pelo regresso de uma terceira personagem, marido dela e primo dele. As histórias relatam desventuras sentimentais que têm um denominador comum: a circunstância de a paixão, em vez de ser desencadeada pelas afinidades entre duas pessoas ou pela atracção romântica, ser suscitada pela compulsão de imitar. Nestas histórias, o atributo mais atraente do ser amado é o facto de ser amado por um terceiro, por isso o amor acaba por ser um acto de imitação. Este é o postulado da teoria do desejo mimético, exposta pelo filósofo René Girard, que o filme identifica explicitamente através das imagens de um documentário em que uma das personagens trabalha. Mouret tem o mérito de evitar que o filme redunde em mera exposição ilustrativa ou caia no pedantismo. A fluidez da narrativa, a qualidade dos diálogos, o doseamento da ironia e da comédia, o trabalho dos actores (todos muito bons, talvez com ligeiro destaque para Émilie Dequenne, a Rosetta dos irmãos Dardenne), mostram um cineasta em plena maturidade e com a mestria necessária para construir um filme coeso e intelectualmente estimulante. Para aferir da dificuldade da tarefa, compare-se este filme com O Meu Tio da América (1980), um dos menos conseguidos da longa e brilhante filmografia de Alain Resnais, que, cruzando a ficção com exposições teóricas sobre o comportamento humano (baseadas no trabalho do biólogo e filósofo Henri Laborit), resulta forçado e árido. Acrescente-se que As Coisas que Dizemos, as Coisas que Fazemos é o filme de Mouret que mais justifica as comparações com Éric Rohmer, dispensadas com tanta leviandade nos tempos que correm, e isto essencialmente por duas razões. Em primeiro lugar, a segurança com que o realizador explora os espaços físicos (interiores, ambiente urbano, natureza) que servem de palco aos longos diálogos demonstra que é um digno discípulo de Rohmer, um dos mais geniais encenadores da palavra oral da história do cinema, na medida em que também Mouret valoriza o diálogo através das movimentações das personagens no espaço. Em segundo lugar, tal como o autor de A Minha Noite em Casa de Maud (1969) e Conto de Primavera (1990), Mouret explora a coexistência permanente, dentro da mesma personagem, de, por um lado, um desejo potencialmente perturbador e, por outro, da compulsão para reflectir e falar sobre os mecanismos por trás desse desejo. É duvidoso que estes desejos de ordem mental e ética facilitem o acesso à felicidade, mas o final de As Coisas que Dizemos, as Coisas que Fazemos parece sugerir um certo apaziguamento, que se sobrepõe à falta de uma união entre almas gémeas predestinadas a encontrarem-se, como prescreve o receituário romântico. A estreia comercial deste filme, um dos mais interessantes que o Cinéfilo Preguiçoso viu este ano, está prevista para o dia 25 de Novembro. Resta-nos desejar que os circuitos de distribuição e os festivais continuem a trazer-nos notícias de Emmanuel Mouret.
 
Outro filme de Emmanuel Mouret no Cinéfilo Preguiçoso: Caprice (2015).

17 de outubro de 2021

A Metamorfose dos Pássaros

A vertente mais interessante de A Metamorfose dos Pássaros (Catarina Vasconcelos, 2020) é aquela em que se processa a investigação de uma família através dos seus objectos e imagens. É um filme que pensa e faz pensar com imagens, o que nem sempre acontece no cinema actual, e só por isso vale a pena vê-lo. A reflexão visual de A Metamorfose dos Pássaros é muitíssimo mais empolgante do que a reflexão verbal. Num dos aforismos do livro Autres Rhumbs, a propósito das «forças de atracção que chamam para os seus abismos», Paul Valéry chama a atenção para os perigos do «demasiado belo» e do «demasiado triste», dois problemas que prejudicam A Metamorfose dos Pássaros. Sobretudo na primeira metade do filme, a omnipresença da voz-off, quase sempre no mesmo tom sentimental, cultivando alguns lugares-comuns sem distanciamento e sem tensão emocional, torna-se cansativa, a ponto de a dada altura o espectador deixar de conseguir prestar atenção às palavras. É inevitável recordarmos imediatamente dois outros filmes portugueses com algumas proximidades com este, mas que resolvem dificuldades semelhantes de maneira mais feliz. Em Ruínas (Manuel Mozos, 2009), as imagens também são acompanhadas por leitura de cartas em voz-off, mas o uso irónico que se faz desta componente torna o filme mais complexo e cativante. No cinema português recente, talvez o título com que A Metamorfose dos Pássaros tem mais afinidades seja A Toca do Lobo (Catarina Mourão, 2015), um filme que também é sobre a memória e os objectos de uma família e que consegue ser tão ou mais comovente e inspirador do que o filme de Catarina Vasconcelos ao explorar estas duas facetas sem sobrecarga de metáforas, adoptando um modo objectivo e nunca cedendo a qualquer tentação de sentimentalismo. Apesar destas reservas, A Metamorfose dos Pássaros deixa o espectador motivado para seguir de perto a carreira futura desta realizadora, visto que demonstra um talento evidente para a composição visual e uma vontade de explorar a fronteira entre documentário e ficção que lhe permitirão fazer coisas muito interessantes.

10 de outubro de 2021

O Ano da Morte de Ricardo Reis

É instrutivo comparar O Ano da Morte de Ricardo Reis (2020), visto esta semana depois de ter sido gravado num canal de televisão, com Os Maias (2014). Ambos se baseiam em romances muito conhecidos de autores que fazem parte do cânone da literatura portuguesa e ambos são realizados por João Botelho, que aliás tem sido pródigo em adaptações literárias de clássicos e modernos, de Dickens e Garrett a Agustina Bessa-Luís, e que já abordara o universo pessoano em Conversa Acabada (1981) e Filme do Desassossego (2010). Em Os Maias, o realizador conseguiu produzir um objecto cinematográfico interessante sem distorcer ou fugir ao conteúdo do livro, graças a uma série de opções inteligentes na escolha do elenco, nos cenários e nos diálogos, entre outros elementos. O desafio de transpor para o ecrã o romance de Saramago era, à partida, potencialmente mais árduo, pelo facto de o livro se centrar num dos heterónimos de Pessoa, um autor estudado e analisado até à exaustão. Tentar respeitar a complexidade deste autor, do seu universo essencialmente mental e conceptual, e da questão dos heterónimos, sem deixar de ser fiel à ideia de Saramago, que consiste em imaginar que Reis sobreviveu ao seu criador e se passeia por uma Lisboa que assiste à consolidação do Estado Novo e à aproximação da guerra na Europa, é uma aposta muito arriscada, que só a espaços sentimos ter sido conseguida. O filme mostra quase exclusivamente Reis em diálogo com o próprio Pessoa, aparição proveniente do mundo dos mortos, e duas personagens femininas: a criada de hotel Lídia, com quem se envolve romanticamente, e Marcenda, uma jovem que se sente atraída por ele, mas hesita em dar o passo seguinte. Este formato, assente predominantemente em diálogos entre duas personagens, acaba por se tornar repetitivo. As opções de atribuir o papel de Reis a um actor brasileiro pouco conhecido dos cinéfilos portugueses (Chico Díaz) e de mostrar um Pessoa envelhecido e distante da aparência mais conhecida do poeta (Luís Lima Barreto) compreendem-se enquanto tentativa de suscitar alguma estranheza no espectador e de evitar o efeito ilustrativo, mas não são totalmente convincentes, o mesmo se aplicando aos desempenhos de Catarina Wallenstein e Victoria Guerra, que parecem pouco à vontade na pele das suas personagens. Algumas tiradas de Pessoa, no limite do brejeiro, também soam a falso. Percebe-se bem que o Pessoa que temos neste filme nos chega via Saramago, mas há uma ênfase excessiva nos comentários ou aforismos mais próximos do senso comum do romance do Prémio Nobel. Além disso, Ricardo Reis parece mais mulherengo no filme do que no romance, onde o seu interesse por mulheres é mais abstracto e literário, e esta diferença gera uma personagem pouco credível. É claro o esforço de João Botelho para criar uma obra cinematograficamente válida que não seja uma mera extensão do livro, por exemplo por meio da fotografia (um preto-e-branco extremamente contrastado) e pela maneira como Lisboa é filmada, com interiores e exteriores a sucederem-se sem que alguma vez se dissipe uma impressão intensa de claustrofobia. No entanto, O Ano da Morte de Ricardo Reis, embora tenha ideias interessantes e seja plenamente coerente com a restante filmografia do realizador, deixa o espectador a pensar que desta vez a transposição para o cinema do universo pessoano não funcionou bem.

3 de outubro de 2021

Rifkin's Festival

Para o Cinéfilo Preguiçoso, a estreia de um filme de Woody Allen é sempre uma grande ocasião. Este Rifkin’s Festival (2020), sobre um escritor/professor de cinema que acompanha a mulher ao Festival de San Sebastián e, entre os passeios que dá pela cidade, percebe que tem de mudar de vida, é um divertimento para cinéfilos, mas também aborda algumas questões interessantes que Woody Allen ainda não tinha tratado. Os jogos cinéfilos desenvolvem-se principalmente nos estranhos sonhos e visões diurnas de Mort Rifkin/Wallace Shawn, em que são recriadas cenas de filmes que tanto este como o próprio Woody admiram (de Orson Welles, Fellini, Godard, Truffaut, Lelouch, Bergman e Buñuel), mas repetidas como farsa, com as personagens e os actores de Rifkin’s Festival, numa espécie de sequela duvidosa. Há também uma cena que parece recriar a discussão entre as personagens de Penélope Cruz e Javier Bardem em Vicky Cristina Barcelona (2008), entre outras que ecoam situações que já vimos noutros filmes de Woody Allen. Isto porque Rifkin’s Festival também é sobre aquilo que vem acontecendo ao cinema, numa época em que as preocupações comerciais se sobrepõem às preocupações artísticas, com a consequência de as produções mais medianas serem sobrevalorizadas pelo facto de terem potencial para gerar mais lucros, sobretudo se cultivarem uma “mensagem” em sintonia com o zeitgeist social e político. Esta questão é bem ilustrada pela personagem do realizador interpretada por Louis Garrel, que enuncia e trabalha uma série de lugares-comuns e superficialidades que são consideradas geniais por quase toda a gente, para grande perplexidade do protagonista. Em Mort Rifkin temos uma personagem que reage contra esta mediocridade, tal como reage contra a mediocridade que identifica no que ele próprio escreve, recusando-se a publicar um romance que não seja uma obra-prima. Para que os espectadores sintam empatia em relação a este protagonista que os outros descrevem como pretensioso afectado, é essencial a interpretação do magnífico Wallace Shawn. A primeira vez em que vimos Shawn no cinema de Woody Allen foi em Manhattan (1979), no papel de Jeremiah, ex-marido de Marie Wilkie/Diane Keaton. Marie refere várias vezes um ex-marido que seria uma personalidade magnética e um dínamo sexual, mas, quando ele finalmente aparece, depois de todas estas descrições hiperbólicas, tem a aparência de Wallace Shawn. Neste Rifkin’s Festival, Shawn representa um papel que parece feito à medida. À semelhança de Rifkin, também Wallace Shawn (que é autor de várias peças e livros de ensaios, mas não é famoso como escritor) pensou durante muito tempo que poderia ser um grande escritor com sucesso, tendo-se visto obrigado a constatar com alguma surpresa que lhe dão mais valor como actor, assim como Rifkin conclui no filme que é mais feliz a dar aulas sobre cinema. Apesar de não ter a aparência convencional dos grandes actores americanos, Wallace Shawn consegue ser de uma subtileza que facilmente passa despercebida a quem não o tenha visto noutros papéis. Há actores, como Jack Nicholson, que continuam a ser eles próprios no cinema, independentemente da personagem que interpretam; Wallace Shawn é sempre ele próprio, mas também a personagem que representa. Na sua aparência de ligeireza, Rifkin’s Festival acaba por ser uma reflexão sobre cinema e a arte, mas também sobre as expectativas que ficam por cumprir no plano pessoal e sentimental, e sobre a vontade de dar a volta à situação, em busca da realização e da felicidade.

Outros filmes de Woody Allen no Cinéfilo Preguiçoso: Broadway Danny Rose (1984); Setembro (1987); Irrational Man (2015); Café Society (2016); Roda Gigante (2017); Um Dia de Chuva em Nova Iorque (2019).

Sobre outro filme com Wallace Shawn: My Dinner with Andre (Louis Malle, 1981).