27 de novembro de 2023

Os 400 Golpes do Cinéfilo Preguiçoso

O texto sobre Céu em Chamas foi o número 400 do Cinéfilo Preguiçoso. Andamos nisto há quase nove anos e por isso achamos que merecemos uma pausa natalícia mais prematura do que habitualmente. Boas festas a todos os cinéfilos que nos seguem, com muitos doces, álcool q. b. e, quem sabe, um ou outro filme. Obrigado por estarem desse lado. Regressaremos em Janeiro.

26 de novembro de 2023

Céu em Chamas

O Cinéfilo Preguiçoso queixa-se frequentemente dos atrasos e falsos alarmes em que a distribuição cinematográfica portuguesa é fértil. Desta vez, há que saudar a rapidez com que Céu em Chamas (2023) estreou em sala, poucos dias após a antestreia no LEFFEST. Neste filme, talvez mais do que em qualquer outra das suas nove longas-metragens anteriores, Christian Petzold justifica a comparação com Éric Rohmer que com excessiva ligeireza é feita a respeito de qualquer cineasta que faça filmes de enredo aparentemente simples, repletos de conversas sobre relações humanas. O filme decorre quase exclusivamente numa casa de férias à beira-mar, ocupada, no princípio do Verão, por dois amigos (Leon e Felix) e por Nadja, cuja presença inesperada perturba as rotinas que as personagens masculinas pretendiam estabelecer. A aproximação a A Coleccionadora (Éric Rohmer, 1967) é evidente, embora neste filme as personagens quisessem entregar-se ao ócio, ao passo que em Céu em Chamas os dois amigos vêm para trabalhar. Leon (Thomas Schubert), em particular, debate-se com o manuscrito de um livro e isso parece retirar-lhe por completo a acuidade de julgamento em relação aos que o rodeiam, assim como a capacidade de sentir empatia. O enredo consiste numa sucessão de episódios em que estas características negativas de Leon emergem, por vezes de uma forma quase caricatural que desequilibra ligeiramente o filme. O espectador é convidado a deduzir que a fraca qualidade do livro que prepara, e que o seu editor acaba por recusar, se deve a este alheamento emocional e à inaptidão para prestar atenção aos outros. O contraste com Felix, que constrói um portefólio com base em fotografias de pessoas que encontra na praia, é gritante. Ao contrário do amigo, Leon não consegue olhar para o próximo, um pouco à maneira de outras personagens petzoldianas cuja conduta é determinada por uma singular falta de clarividência – pensemos no protagonista masculino de Phoenix (2014), incapaz de reconhecer a própria mulher. Os incêndios florestais que são mencionados e avistados ao longe contribuem, em paralelo com as fricções e conflitos entre Leon e as outras personagens, para criar um ambiente nos antípodas do idílio que o cenário e a época estival prometeriam. O epílogo de Céu em Chamas, na sequência do desenlace trágico de uma tentativa de fuga ao fogo, sugere que o enredo do filme coincide com a história do livro que Leon terá escrito mais tarde, para tentar redimir-se do romance falhado. Esta interpretação leva-nos a questionar a veracidade dos eventos a que assistimos, como acontece em relação a outros filmes em que o ofício de escritor da personagem nos faz perguntar onde fica a fronteira entre a efabulação e a realidade – por exemplo, Swimming Pool (François Ozon, 2003). Este epílogo, que parece uma tentativa de fechar a história mostrando que Leon conseguiu usar a experiência como plataforma para crescer enquanto artista, contrasta com a ambígua cena final do reencontro com Nadja. Esta conjunção soa um pouco a falso, como se Petzold quisesse ao mesmo tempo atar pontas soltas, mas deixando tudo em aberto quanto à evolução da relação entre as personagens principais. O Cinéfilo Preguiçoso não tem sido avaro em reparos cépticos sobre os últimos filmes de Petzold, por estes parecerem hesitar entre registos e temas. Talvez seja uma boa altura para deixar claro que nada disto belisca nem a convicção de que este realizador é um dos mais consistentemente interessantes do cinema contemporâneo, nem a expectativa em relação às próximas obras.
 
Outros filmes de Christian Petzold no Cinéfilo Preguiçoso: Wolfsburg (2003); Fantasmas (2005); Yella (2007); Barbara (2012); Phoenix (2014); Em Trânsito (2018), Undine (2020). 

19 de novembro de 2023

O Assassino

Em O Assassino (David Fincher, 2023), temos uma personagem nitidamente fincheriana, mas que se descobre protagonista de um enredo irónico, baseado numa banda desenhada francesa (escrita por Alexis “Matz” Nolent e ilustrada por Luc Jacamon), com laivos jarmuschianos, relacionados com o acaso e os limites do controlo. Sobre o protagonista (interpretado por Michael Fassbender), que foi comparado com a personagem de Alain Delon em O Samurai (Jean-Pierre Melville, 1967), sabemos que é um homem que gosta de se confundir com um turista alemão, com várias identidades mas sem grande psicologia, e que optimiza todos os seus passos e rotinas para ser uma máquina de matar eficiente e cumprir o dever. No início do filme, num misto de teledisco, anúncio publicitário e Janela Indiscreta, seguimos o seu olhar, a música que escuta e as suas palavras em voz-off, enquanto vigia um prédio e uma rua em Paris. O Assassino raramente fala com outras personagens, mas tem um monólogo interior obsessivo e repetitivo que, com as canções dos Smiths que ouve constantemente, o ajuda a concentrar-se nas tarefas a desempenhar. Depois de cometer um erro, no entanto, o seu discurso deixa de ser congruente com os acontecimentos que vemos desenrolar-se, apesar de ele continuar a repetir o conjunto de regras pelas quais rege o seu comportamento. Seguimos o seu percurso vertiginoso por várias cidades dos Estados Unidos e pela República Dominicana, onde tem residência e até uma companheira. Neste percurso, tenta regressar ao ponto de partida e retomar as rotinas normais da sua profissão, para poder voltar a ser uma personagem tipicamente fincheriana. Dividido em capítulos e com uma banda sonora original sinistra dos excelentes Trent Reznor e Atticus Ross, O Assassino tem um pouco da literariedade de Se7en (1995), um pouco da ironia de Clube de Combate (1999), um pouco do carácter obsessivo e do interesse pela investigação das personagens de Zodiac (2007) e Millennium (2011), e um pouco da tensão verbal de A Rede Social (2010). Ao mesmo tempo, mostra o avesso destes filmes, na medida em que assume uma vertente metacinematográfica em que o próprio Fincher parece sugerir que, por muito perfeccionistas que os realizadores e os assassinos sejam, durante a rodagem ou a execução há coisas que correm mal e os filmes podem ser simplesmente uma correria para avaliar e corrigir estas situações. Em muitos aspectos, aliás, é possível que O Assassino seja o filme mais conceptual deste realizador, apesar de aparentemente acompanhar apenas a história de um profissional competente, que se considera uma personagem menor. Seria também interessante estudar a maneira como a longa experiência de Fincher como realizador de telediscos influenciou a estética de O Assassino, que combina a plasticidade imediata e a superficialidade inerente a este meio com a vertente reflexiva sobre a construção de um filme e a tensão entre o controlo e a inevitabilidade dos imprevistos.

12 de novembro de 2023

L'Amitié

O cinema francês é fértil em percursos singulares, à margem dos géneros consagrados e das representações em certames oficiais. Tal deve-se a vários factores, entre os quais uma tradição de exaltação da diferença e da diversidade e a relativa abundância de fontes de financiamento para projectos independentes e alheios à ortodoxia. A carreira de Alain Cavalier, que se estende já por seis décadas e meia, é particularmente desconcertante. Cavalier especializou-se, nos anos sessenta, em filmes policiais e thrillers políticos repletos de estrelas (Romy Schneider, Trintignant, Delon), mas começou a realizar filmes muito mais pessoais a partir dos anos setenta. Depois do sucesso, estrondoso e inesperado, do belíssimo Thérèse (1986), enveredou por um caminho radical que o conduziu a uma série de filmes de registo documental, filmados com uma câmara digital e uma equipa reduzida ao mínimo. Estes filmes são quase sempre retratos de pessoas: representantes de ofícios, sobretudo em 24 Portraits d’Alain Cavalier (1987-1991); ou amigos e conhecidos, como em René (2001). O último filme em que adoptou um registo próximo da ficção, embora com contornos peculiaríssimos, foi o extraordinário Pater (2011). Graças a quem teve a boa ideia de o integrar na programação do DocLisboa deste ano, o Cinéfilo Preguiçoso pôde agora ver L’Amitié (2022). Cada uma das três partes deste documentário é dedicada a alguém de quem Cavalier se tornou amigo depois de ambos terem colaborado profissionalmente: o letrista e actor Boris Bergman; Maurice Bernard, produtor de Thérèse e marido da romancista e actriz bressoniana Florence Delay; e Thierry Labelle, actor em Libera Me (1993), que há vários anos trabalha como estafeta. As evidentes cumplicidade e amizade entre estes homens ajudam a tornar saliente uma característica do cinema de Cavalier que percorre toda a sua longa filmografia: a maneira sóbria e atenta como filma a pessoa enquadrada pela sua câmara, seja esta um actor a representar um papel, ou uma mulher ou um homem a «fazerem de si próprios». Entre as anedotas e recordações que emergem naturalmente durante as conversas filmadas em L’Amitié, sobressai um outro aspecto: a capacidade de Cavalier filmar ângulos, detalhes ou gestos que contribuem para enriquecer e tornar mais interessante o retrato que está a construir. É mais uma das muitas demonstrações de que ele não abdicou de ser cineasta quando optou por este registo artesanal e auto-suficiente. A inteligência narrativa e o sentido do plano estão intactos. Mais do que despojar-se de bagagem supérflua ou depurar, o que Cavalier fez ao longo do seu percurso foi sublimar a tarimba dos seus anos de formação (que incluíram uma escola de cinema – o famoso IDHEC – e a assistência de realização em dois filmes de Louis Malle) e de trabalho no cinema comercial, e transformar essa sabedoria num estilo pessoalíssimo. Esta combinação de experiência e intenção de ruptura deu-nos filmes que têm como traço distintivo uma generosidade imensa, e de onde nunca estão ausentes uma certa malícia e um espírito lúdico que são uma maneira de o realizador se mostrar, reforçando a ideia de que é ele o cicerone e de que não lhe cabe apagar-se diante do objecto do seu retrato. Quando se filma a caminho da casa de Boris Bergman com um ramo de flores na mão, o realizador de L’Amitié constrói uma situação dramática que contribui para nos dar a conhecer a personalidade e a riqueza humana do seu interlocutor. É ainda e sempre de cinema que se trata: uma ferramenta para examinar o mundo e a humanidade. Poucos sabem usar esta ferramenta com tanta empatia, gentileza e sagacidade como Alain Cavalier.

5 de novembro de 2023

Uma Mulher Sob Influência

Em Uma Mulher Sob Influência (John Cassavetes, 1974), temos um verdadeiro estudo da doença mental – no seu contexto e nos seus sinais, sintomas e efeitos. Mabel (Gena Rowlands) e Nick Longhetti (Peter Falk) interpretam um casal de classe operária vulnerável a este problema, no seio de uma família disfuncional. O mais interessante neste filme é o modo como Cassavetes revela e explora a dificuldade de definir fronteiras nítidas neste género de doenças. Sem dúvida, há uma protagonista, mas toda a família faz parte do problema e é afectada por ele, acabando por replicar e ampliar, com as suas próprias acções e reacções, o comportamento da personagem principal. Nem sempre é possível distinguir as características da doença dos traços das personagens; tão-pouco são imediatamente nítidas as distinções entre comportamentos simplesmente excêntricos e comportamentos perigosos. A doença mental é retratada como uma intensificação das características mais idiossincráticas de cada personagem e, portanto, também intensifica a teatralidade de todas as situações. Há quem se queixe do dramatismo excessivo deste filme e o descreva como uma experiência violenta (Richard Dreyfuss terá dito que, quando chegou a casa, vindo do cinema, teve de ir vomitar – comentário que aumentou a afluência do público), mas, se sentimos esta teatralidade como excessiva e artificial, isso também se deve ao facto de Cassavetes não aceitar nenhuma das convenções narrativas e cinematográficas que costumam definir a verosimilhança. Em Uma Mulher Sob Influência, o desenrolar da acção é indissociável de todos os trejeitos, tiques, esgares, maneirismos, gritos, gestos bruscos e contorções físicas e emocionais das personagens. E, na verdade, esta teatralidade excessiva é típica de muitas doenças mentais; portanto, pode-se dizer que o realizador abdica das convenções do realismo para se aproximar da realidade. O talento de Gena Rowlands é evidente na capacidade de construir uma personagem em que reconhecemos imediatamente pessoas com este tipo de doença – e não só mulheres. (Aliás, já alguém disse que, de certa forma, é Gena Rowlands, não o actor principal, quem costuma desempenhar o papel mais próximo do próprio Cassavetes nos filmes deste realizador.) O fim de Uma Mulher Sob Influência é particularmente interessante, na medida em que explora a abolição de mais uma fronteira: quando ficam finalmente sozinhos e fecham a porta envidraçada através da qual continuamos a observá-los, os protagonistas parecem transformar-se gradualmente nos actores, enquanto estes, apaziguados e perdendo aos poucos a tensão dos papéis que desempenham, arrumam o quarto, que assume lentamente o estatuto de cenário. Este final chama a atenção para o facto de tudo ter sido uma representação, e sublinha que desempenhamos papéis não só no cinema, mas também na vida, ao mesmo tempo que lembra que pode ser difícil simplesmente “sermos nós mesmos”, como Nick incita Mabel a fazer neste filme, tal como, em Rostos (John Cassavetes, 1968), também Richard incitara Jeannie a fazer.

Outros filmes de John Cassavetes no Cinéfilo Preguiçoso: Sombras (1959); Rostos (1968).

29 de outubro de 2023

Rostos

Fala-se muitas vezes de John Cassavetes como um dos realizadores mais influentes do século XX e como pioneiro do cinema independente norte-americano. Existem excelentes argumentos para sustentar ambas as afirmações, mas é interessante constatar que, à semelhança de outros cineastas descritos como pioneiros ou como estando à frente do seu tempo (Godard ou Vigo, por exemplo), Cassavetes foi mais longe do que qualquer um dos que podem ser considerados seus seguidores. É admissível que os seus filmes, de tão intensos e originais, suscitem um efeito intimidatório que se sobrepõe à admiração e vontade de emulação. Rostos (1968), visto esta semana em DVD, surgiu nove anos depois de Sombras (1959), tendo Cassavetes realizado, entre estes, dois filmes em que a sua liberdade criativa foi condicionada pelas imposições dos estúdios. Rostos, pelo contrário, é um filme absolutamente livre, tal como era Sombras. Há semelhanças entre os dois, como o predomínio de momentos narrativos isolados, em detrimento de um enredo, ou a aposta nos grandes planos. Enquanto Sombras nos mostrava personagens à procura de um lugar no mundo, sob vários pontos de vista (profissional, artístico, afectivo), em Rostos as personagens são mais velhas e estão instaladas na vida, vulneráveis a crises sentimentais que ocupam por completo as suas existências. Outra diferença importante é que a acção, em vez de se situar nas ruas de Nova Iorque e em locais públicos, se desenrola em interiores domésticos: a residência de Richard e Maria (John Marley e Lynn Carlin) e a casa de Jeannie (Gena Rowlands), uma prostituta de luxo que Richard frequenta. Ao contrário de outros filmes sobre temas semelhantes, Cassavetes não está aqui interessado em dissecar as razões por detrás da crise conjugal de Maria e Richard, nem em explorar os detalhes do processo de separação. Bergman, o Baumbach de Marriage Story (2019) e muitos outros seguiram esse caminho, antes e depois, mas Cassavetes concentra-se em mostrar a energia emocional, as infantilidades e os desabafos angustiados dos protagonistas. Apesar da impressão de improvisação e de ausência de estrutura narrativa, Rostos apresenta uma simetria muito sólida entre as trajectórias centrífugas dos membros do casal, à procura de companhia e validação junto de uma prostituta e de um gigolô (Seymour Cassel). Cassavetes possuía um talento raro para realizar filmes que nos parecem livres e quase documentais (e que, por sinal, não envelheceram nada), mas que dependem de um gigantesco investimento de técnica e inteligência. Naturalmente que nada disto seria possível sem o trabalho extraordinário com os actores. É interessante verificar que Carlin e Cassel foram nomeados para os Óscares por este filme (tal como o próprio Cassavetes, na categoria de argumento original) e que Marley recebeu o prémio de representação no Festival de Veneza de 1968, o que é notável para um filme independente, de orçamento muito baixo e ao arrepio de todas as normas e modas. Depois de rever Sombras e Rostos, fica-se a pensar: que filmes do último meio século, norte-americanos ou de outras cinematografias, nos deixam com uma impressão comparável de arrojo e independência? Não muitos.

22 de outubro de 2023

Sombras

Esta semana, a título excepcional, publicamos o texto escrito para a apresentação do filme Sombras (John Cassavetes, 1959) no Close-up, Observatório de Cinema de 2023. Muito obrigada a Vítor Ribeiro pelo simpático convite para estarmos presentes.

Como se apresenta um filme? Os filmes não precisam necessariamente de apresentação. Até podemos vê-los por acaso, entrando simplesmente num cinema e escolhendo um título sem sabermos qual é o tema nem quem é o realizador, ou, fazendo zapping na televisão, quando paramos se as imagens ou os diálogos nos chamam a atenção.

Um filme que se torna importante para nós e que não esquecemos conquista-nos independentemente do realizador ou até das histórias que conta. As imagens atraem-nos, os diálogos parecem-nos logo estranhamente próximos ou distantes: temos a sensação de que já tivemos aquelas conversas com alguém, ou então que nunca ninguém nos diria aquelas coisas (e ficamos tristes ou contentes por esse motivo).

Quando vemos Sombras, de John Cassavetes, sentimo-nos imediatamente próximos das personagens: três irmãos ligados às artes que moram juntos num pequeno apartamento em Nova Iorque. Dois irmãos são músicos (um cantor e um trompetista), mas ainda não estão bem instalados na carreira, e têm uma irmã mais nova, que ainda não descobriu a sua vocação (a dada altura, para grande consternação de um amigo, escreve um conto sobre uma rapariga que beija um desconhecido na rua, portanto pode vir a ser escritora, mas não sabe ainda, também pode vir a ser pintora).

Não conseguimos imaginar as personagens do filme sem as suas preocupações artísticas. As conversas que têm são sobre arte, definem-se com a ligação que têm à arte. Ao mesmo tempo, têm os pés bem assentes na terra, falam de problemas concretos, relacionados com a carreira, o trabalho e o dinheiro. E nós identificamo-nos com estas preocupações. Podíamos ter conversas parecidas.

De onde vem esta sensação de vermos pessoas como nós a viverem as suas vidas?

Para começar, Sombras é um filme sem o peso das convenções do cinema americano da mesma época: dramatismo da história, narrativa clássica, grandiloquência, grandes acontecimentos e grandes afirmações. Cassavetes é uma espécie de óvni, embora o cinema americano independente das décadas seguintes se tenha desenvolvido a partir da obra dele. Para encontrarmos filmes com uma estética mais próxima, talvez tenhamos de procurar na Nouvelle Vague: O Acossado, de Godard, estreou em 1960. (Se quisermos um equivalente português próximo, recordamos que, em 1964, o filme Belarmino, de Fernando Lopes, também segue o protagonista pelas ruas da cidade.)

É o primeiro filme de Cassavetes – que chegou a dizer que, dentro da sua obra, era o seu preferido. Quando realizou Sombras, tinha 30 anos, era actor e dava aulas a aspirantes a actores, encorajando-os a improvisar.

Nesta época, cultivava-se muito a técnica de representação do Método, que era tudo menos improvisação. Os actores faziam um trabalho muito sério de introspecção para compreenderem a história, as motivações e as emoções das personagens a partir das suas próprias experiências. Cassavetes, contudo, preferia que fossem os próprios actores a desenvolver as personagens através das suas próprias palavras e acções. Sombras surgiu a partir dos exercícios de improvisação dos actores nas aulas de Cassavetes.

Ainda assim, convém notar que o filme que vamos ver a seguir assenta num guião bem trabalhado. O realizador filmou uma primeira versão mais improvisada, mas quando a viu, decidiu aperfeiçoar o guião para o tornar mais coerente. O que vamos ver é uma versão aperfeiçoada, que foi desenvolvida a partir da improvisação, mas não é totalmente improvisada.

O título do filme dá um pouco que pensar. Será que as sombras são as tonalidades de pele que distinguem fisicamente os três irmãos, entre o negro, o castanho e o branco? Com personagens assim, facilmente o racismo poderia ser o tema principal do filme – e, se Sombras tivesse sido realizado em 2023, por outro realizador, talvez fosse. No filme de Cassavetes, no entanto, a cor da pele das personagens é apenas um assunto entre outros, muito mais interessantes. Há um imbróglio com um namorado da personagem feminina, quando este percebe que ela afinal não é branca, apesar de ter pele branca (vá-se lá saber o que quer dizer «ser branco»!), mas a vida continua.

Para vermos a diferença entre Sombras e outros filmes americanos da mesma época, basta dizer que no mesmo ano – 1959 – estreou um filme extraordinário de Douglas Sirk, intitulado Imitação da Vida, em que há uma situação parecida: uma personagem feminina de pele branca, mas com mãe negra. No filme de Douglas Sirk, esta questão tem consequências trágicas e grande impacto melodramático. Em Sombras, as coisas continuam como antes.

Cassavetes explora bem a questão do racismo, mas está mais interessado na vida das personagens. O que mais lhe interessa é o modo como os percursos físicos das personagens pelas ruas, passando por bares, cafés, cinemas, museus, apartamentos pequenos e parques, se articulam com os modos como elas se entendem e descrevem.

A irmã mais nova, Lelia – interpretada pela actriz Lelia Goldoni, que morreu em Julho deste ano –, é particularmente cativante. Vemo-la a experimentar e rejeitar os diferentes papéis que a sociedade lhe atribui. Por exemplo, procura-se entre as mulheres nos cartazes dos cinemas, mas não se encontra. É uma personagem feminina completamente livre, que pensa pela própria cabeça e testa as ideias na realidade, apesar dos constrangimentos que querem impor-lhe e das coisas que lhe dizem que deve sentir. (Diga-se de passagem, aliás, que Cassavetes, ao contrário de vários realizadores importantes da geração seguinte, como Scorsese, Spielberg ou Coppola, sabia filmar mulheres.)

Lelia, como as outras personagens de Sombras, não tem uma identidade fixa. (Não só não é bem branca como, a dada altura, a acusam de ter um comportamento masculino.) Neste filme, a identidade das personagens é dinâmica e depende das interacções que têm com as outras e com os espaços. Muitos planos de Sombras têm rostos sobrepostos, corpos em movimento, pessoas muito próximas umas das outras em espaços minúsculos, trocas de palavras, discussões, toques, reconciliações. As personagens correm, perseguem-se, fogem, dançam e caem. Por isso, será que as Sombras do título também podem ser associadas às simples silhuetas do teatro de sombras, em que se conta histórias a partir das imagens e movimentos criados por estes bonecos?

Para terminar, quero destacar uma sequência muito bonita em que, num museu ao ar livre, as personagens partilham o espaço com várias esculturas, sendo ao mesmo tempo parecidas com elas, mas muito diferentes delas. Aproveito esta sequência para recordar o escritor Italo Calvino, de quem no dia 15 de Outubro se comemorou o centenário do nascimento. No livro Seis Propostas para o Próximo Milénio (trad. José Colaço Barreiros), Calvino lembra que, se não queremos petrificar (se não queremos transformar-nos nas esculturas ou nas imagens dos cartazes de cinema que vemos neste filme), temos de resistir ao peso, à inércia e à opacidade do mundo – porque há alturas em que só percebemos a complexidade das coisas se as dissolvermos nos seus elementos mais essenciais. É isso que Cassavetes faz, mostrando que muitos elementos que nos pareciam imprescindíveis no cinema afinal podem ser dispensáveis.