29 de janeiro de 2023

Alcarràs

Visto em DVD, Alcarràs (Carla Simón, 2022), vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim, acompanha uma família que vive da exploração de um pomar de pessegueiros, numa zona da Catalunha a que ninguém vai e onde não há nada além de explorações agrícolas. O filme passa-se no presente, quando este modo de vida assente na prática da agricultura por pequenos grupos familiares, na ligação à terra, na convivialidade, na transmissão das histórias do passado e na liberdade selvagem da infância deixa de ser sustentável. Filma-se um universo praticamente à parte, que se confronta com o carácter invasivo do progresso, representado não só pela chegada das escavadoras e dos painéis solares, mas também pela quebra de compromissos verbais do passado. Durante a Guerra Civil, esta família tinha escondido na cave os vizinhos, que, em sinal de gratidão, lhe permitiram explorar aquelas terras. Para os descendentes dos proprietários, no entanto, este compromisso, de que não ficou qualquer contrato, não tem valor em face do lucro que podem alcançar, se deitarem abaixo o pessegal para instalarem painéis solares. Mesmo sabendo que aquela será a última colheita e que vai perder aquele espaço, a família repete os antigos gestos ancestrais tanto como forma de resistência, como por não saber nem ter vocação para fazer mais nada – mesmo o filho mais velho, apesar de rebelde noutras vertentes, parece ter inclinação para o mesmo caminho. Em alguns aspectos, como o tema e a sensação de nostalgia que evoca no espectador, Alcarràs lembra um filme como O País das Maravilhas (Alice Rohrwacher, 2014). Ainda assim, distingue-se por resistir heroicamente a algumas tentações típicas de filmes com temas próximos: o simbolismo, o lirismo, o moralismo, o sentimentalismo e o saudosismo. Acima de tudo, o filme recusa-se a mostrar soluções para o problema que mostra ou a sugerir que as personagens encontrarão maneira de escapar ao impasse que as constrange. Aqui temos o universo agrícola tal como ele é: esforço físico, suor, dores nas costas, calor, lama, pragas (um coelho morto é só um coelho morto), trabalho precário de imigrantes, dificuldades económicas, querelas, manifestações de agricultores, machismo. O lugar é filmado a partir de dentro, no dialecto catalão específico da zona de Lleida, com actores não profissionais, seleccionados em diferentes terras desta região em que a própria realizadora viveu durante a sua infância. O casting prolongou-se durante um ano, a que se seguiram três meses de ensaios, com improvisação sobre os antecedentes das personagens e do enredo. Só depois os actores leram o guião. Por estes motivos, o filme adquire uma tonalidade documental que, curiosamente, fortalece o seu impacto emocional. Por si só, esta tonalidade não é uma vantagem, mas aqui associa-se a todo um investimento na ficção que a torna um efeito e não um ponto de partida, transformando-a na abordagem mais adequada aos objectivos da realizadora e coargumentista. Quem viveu em meios semelhantes reconhece aquelas personagens e os seus gestos e histórias. Apesar de ser um filme propositadamente circunscrito a uma região, deixa-nos a pensar sobre questões de família e memória, e também sobre como pode ser perder o espaço físico e mental dos nossos antepassados.

22 de janeiro de 2023

Os Passageiros da Noite

É difícil falar em “cinema francês”, ou de outra nacionalidade, sem incorrer em generalizações pouco úteis. Contudo, parece incontestável que o cinema produzido em França nas últimas duas ou três décadas possui um conjunto de características e temas que, não sendo exclusivos, o distinguem de outras cinematografias, pela insistência com que se repetem. De vez em quando, surge um filme que, independentemente dos seus méritos, funciona como repositório desses assuntos, preocupações, tendências formais e até tiques de realização (por vezes irritantes). Os Passageiros da Noite (2022), realizado por Mikhaël Hers e estreado recentemente, passa-se em Paris durante o primeiro mandato de François Mitterrand e centra-se numa família composta por Élisabeth (Charlotte Gainsbourg, muito convincente, como sempre), pelos seus dois filhos e por uma jovem em dificuldades que é acolhida no apartamento familiar. Vendo-se obrigada a encontrar emprego depois de se separar do marido, Élisabeth é contratada como assistente telefónica de um programa de rádio nocturno – circunstância conveniente, dada a sua propensão para a insónia, mas que a obriga a cumprir horários pouco ortodoxos e a passar menos tempo com os filhos. O argumento descreve as tentativas, por parte das personagens, de encontrarem estabilidade profissional e sentimental. É um filme sobre vidas que estão a arrancar e vidas reinventadas, bem como sobre as agruras e convulsões associadas a esses processos. Os momentos mais conseguidos de Os Passageiros da Noite são aqueles em que vemos as personagens nos seus locais de trabalho, compenetradas nos gestos da sobrevivência quotidiana, ou no apartamento onde se cruzam por breves minutos, entre uma aula e um turno. As piscadelas de olho cinéfilas também são de assinalar: assiste-se a cenas de As Noites da Lua Cheia (1984), de Éric Rohmer, e de Le Pont du Nord (1981), de Jacques Rivette, ambas com a malograda actriz Pascale Ogier. Os Passageiros da Noite acusa algum esquematismo na maneira como as personagens são construídas, em particular o filho e a jovem sem-abrigo, que parecem saídos de um molde já usado até à exaustão. As interacções e os conflitos entre trabalho e vida privada, a crise da adolescência, as tentativas inglórias de singrar no meio artístico, são aqui tratadas de forma nem mais nem menos conseguidas do que em tantos outros filmes franceses. Embora estas comparações possam ser injustas ou ociosas, é interessante pensar na carga dramática e na profundidade que uma realizadora e argumentista como Mia Hansen-Løve, por exemplo, seria capaz de injectar nesta história. Não há mal nenhum na existência de tradições cinematográficas caracterizadas pela atenção a certos assuntos ou ambientes, mas já é mais problemático que a tradição seja cultivada através de uma repetição atávica de gestos formais e procedimentos que inibe a individualidade. Apesar de ter muitos motivos de interesse, Os Passageiros da Noite ressente-se disso mesmo, raramente descolando de uma certa mediania e do conformismo

15 de janeiro de 2023

C'mon C'mon

C’mon C’mon (2021), a quarta longa-metragem de Mike Mills, infelizmente, não estreou nas salas portuguesas, mas já está disponível nos videoclubes das operadoras de telecomunicações. Acompanhamos o breve intervalo na vida de Jesse (Woody Norman), quando fica a cargo de Johnny (Joaquin Phoenix), seu tio, porque a mãe (Gaby Hoffmann) tem de tratar do pai, que sofre de doença bipolar. C’mon C’mon, apesar de explorar a relação entre crianças e adultos, e filhos e pais, não é o típico filme em que uma criança mostra a um adulto uma perspectiva diferente, assim desencadeando uma reconciliação intergeracional, que muitas vezes soa a falso. O próprio realizador o descreve como uma obra não narrativa, na medida em que não apresenta conflito, causalidade, transformação das personagens nem manipulação de sentimentos. Segundo Mike Mills, C’mon C’mon é antes um misto de documentário e história arquetípica. Johnny trabalha na rádio e tem de viajar por diferentes cidades americanas para gravar entrevistas com crianças e adolescentes sobre questões relacionadas com a história e o futuro. Esta vertente documental não explica nem comenta a história principal, mas contamina-a com a sua errância, além de chamar a atenção para a possibilidade de preservação de pensamentos e momentos efémeros, como faz o próprio Jesse também, quando capta os sons das cidades que percorre com o tio. A banda sonora de Bryce e Aaron Dessner (nossos conhecidos dos The National) reforça o carácter deambulatório deste filme. O preto e branco talvez o torne mais abstracto e próximo da fábula. Como o próprio Mike Mills salienta, duas das influências principais de C’mon C’mon são Alice nas Cidades (Wim Wenders, 1974), que também é uma espécie de road movie a preto e branco em que o protagonista fica com uma criança a seu cargo; e o trabalho de Gordon Willis,  director de fotografia da trilogia O Padrinho e de alguns filmes de Woody Allen, como Annie Hall, Interiors, Manhattan e Stardust Memories, que serve de referência ao director de fotografia Robbie Ryan (o qual, por sua vez, também trabalhou em filmes como American Honey ou A Favorita, sendo colaborador frequente de Noah Baumbach). Não vale a pena, portanto, ver C’mon C’mon com as expectativas que habitualmente levamos para o cinema. É um filme sobre vidas individuais, mas que alterna entre interiores e exteriores, combinando o particular e o universal, através de, por um lado, conversas íntimas em quartos, casas de banho e salas de estar, incluindo longos diálogos telefónicos à distância entre Johnny e a irmã, e, por outro, sequências na rua e outros espaços públicos, dotadas de uma dimensão quase cósmica, graças à forma como são filmadas. Está próximo do estatuto de experiência sensorial: apesar de se assistir a uma evolução das relações entre as personagens, esse não é o fulcro do filme. Trata-se mais de atravessar aqueles espaços, conversas e leituras sobre a passagem do tempo do que de assistir ao desenrolar e desenlace de uma história.

Ler também: Mulheres do Século XX (Mike Mills, 2016).

8 de janeiro de 2023

Os Fabelmans

Steven Spielberg afirmou que o impulso para realizar Os Fabelmans (2022) surgiu durante o isolamento imposto pela pandemia: a paragem forçada compeliu-o a interrogar-se sobre qual o projecto que, entre os que mantinha em suspenso, gostaria verdadeiramente de levar avante. A resposta foi esta exploração autobiográfica dos anos de infância, adolescência e primeira idade adulta de um jovem, Sammy Fabelman, que descobre o fascínio pelo cinema e dá os primeiros passos como cineasta. Apesar de os nomes serem diferentes, os pormenores biográficos são muito fiéis à biografia de Spielberg, incluindo as mudanças de casa ao sabor do percurso profissional do pai (Burt Fabelman, inspirado pelo engenheiro informático Arnold Spielberg e interpretado por Paul Dano), a influência da mãe (Mitzi Fabelman, inspirada pela pianista Leah Adler e interpretada por Michelle Williams) e o divórcio dos pais. O filme começa com a primeira ida ao cinema do protagonista, para ver The Greatest Show on Earth (1952), de Cecil B. DeMille, que exerce uma profunda influência na imaginação de Sammy – sobretudo a cena do acidente ferroviário, que ele depois reproduz e filma obsessivamente, na sua pista de comboios. A última cena de Os Fabelmans mostra-nos Sammy a receber conselhos de realização algo crípticos, vociferados por David Lynch, na pele de John Ford. Entre estes dois momentos, desenrola-se uma longa aprendizagem, em que Sammy vai percebendo o poder que as imagens em movimento têm para interrogar a realidade, encantar, chocar e manipular o público – consciência de que Spielberg se serviu para se tornar um dos realizadores mais populares do mundo. O filme explora alguns temas já profusamente glosados no cinema, como o bullying no liceu, o antissemitismo e o conflito geracional, mas raramente cai em lugares-comuns óbvios. Destaca-se pelo equilíbrio e pela inteligência do argumento, pela complexidade das personagens e pela dinâmica entre Sammy e uns pais pouco convencionais, marcada pelos atritos entre as personalidades artística da mãe e prática/analítica do pai. É também notável a maneira como as dimensões físicas e técnicas da realização são ilustradas: Sammy descobre rapidamente que não basta ter ideias bonitas e storyboards – a dada altura, é preciso ir para o terreno, lidar com a inadequação dos actores e com as limitações de orçamento, e no final, no seu quarto de adolescente, montar à mão a película de 8 milímetros. Este processo de montagem artesanal é evocado, em plena era digital, com precisão e uma ausência de sentimentalismo nostálgico que talvez seja a maior virtude do filme. A contenção emocional de Os Fabelmans contrasta com o sentimentalismo excessivo que contamina algumas obras de Spielberg. É interessante constatar que o autor de E.T. – O Extraterreste (1982) e A Lista de Schindler (1993) mostra contenção precisamente naquele que é um dos seus projectos mais pessoais. Note-se, aliás, que é o primeiro filme em que Spielberg participa no argumento desde A. I. Inteligência Artificial (2001), e apenas o quarto da sua carreira em que isso acontece. O co-argumentista é Tony Kushner, seu colaborador de longa data. Talvez a aliança entre o investimento pessoal e uma parceria com um argumentista experiente tenha sido o ingrediente decisivo para o sucesso do filme – sucesso artístico e crítico, diga-se, uma vez que as receitas de bilheteira têm sido decepcionantes. Parece que o público acha mais piada a monstros pré-históricos e acrobacias de exploradores destemidos do que à introspecção e aos exercícios de regresso às origens.