28 de maio de 2017

Aquarius


Com Aquarius (2016), o cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho, cuja actividade na realização se estende já por duas décadas, alcançou de repente uma visibilidade pouco habitual para o cinema brasileiro contemporâneo, além de um apreciável sucesso crítico e de bilheteira. Este filme foi apontado por muitos como uma metáfora dos tempos conturbados que o Brasil atravessa, mas essa leitura parece forçada e oportunista: o enredo, centrado em torno de Clara (Sônia Braga), uma mulher de 65 anos que resiste às propostas de uma construtora para vender o apartamento onde vive na cidade do Recife, poderia passar-se em muitos outros lugares do mundo, e questões como a corrupção e a especulação imobiliária são, infelizmente, universais. A denúncia das maquinações da construtora cai demasiado no maniqueísmo, com excepção das cenas finais, em que as térmites fornecem um equivalente visual à corrupção reinante. O principal interesse do filme reside na maneira como retrata a personagem principal e nos mostra como a obstinação desta, longe de ser um capricho, está ancorada numa profunda rede de afectos e memórias associados ao edifício. Mendonça Filho filma os espaços, quer do apartamento de Clara, quer das zonas circundantes, com notável atenção aos objectos e uma liberalidade judiciosa na utilização dos travellings e na exploração da profundidade de campo, resultando daí um filme lento no ritmo mas visualmente exuberante, embora também repleto de zonas de sombra e amargura. Apesar da omnipresença de Clara e da secundarização de todas as outras personagens, o filme nunca se resume a um veículo para Sônia Braga, o que não deixaria de acontecer nas mãos de um realizador menos hábil perante uma actriz tão poderosa e subtil. Duas referências finais: para a música, usada de forma profusa mas muito original (as canções surgem quase sempre integradas na acção do filme, postas a tocas por Clara em diferentes suportes) e para o prólogo, situado em 1980, que retrospectivamente pode parecer algo deslocado, mas que serve, através da personagem da Tia Lúcia, para consolidar as componentes de dignidade e de transmissão de valores entre gerações, assim como a identificação entre o espaço afectivo e o espaço arquitectónico.

21 de maio de 2017

La La Land


La La Land (Damien Chazelle, 2016), à semelhança de Whiplash (2014), segunda longa-metragem do mesmo realizador, é um filme sobre artistas e os seus sonhos. Em ambos os filmes encontramos as ideias de que não só a arte vale todos os sacrifícios como as ambições artísticas se concretizarão se estivermos dispostos a sacrificar tudo o resto. Whiplash leva esta ideia a um limite no mínimo duvidoso, explorando a hipótese de um professor exigente e violento poder despertar, recorrendo à intimidação, «um grande artista» nos seus alunos – se estes tiverem realmente talento e não morrerem antes numa tentativa tresloucada qualquer para satisfazerem todos os caprichos do mestre. La La Land gira em torno de um par romântico, composto por uma aspirante a actriz (Emma Stone) e um pianista de jazz (Ryan Gosling) que sonha comprar um bar para poder tocar e defender a música de que gosta. Por ser um filme estilizado, com uma abordagem visual retro, é frequente a acção não parecer situar-se no século XXI – certos elementos, como o guarda-roupa ou o escasso recurso a telemóveis na comunicação entre as personagens, confundem um pouco as coordenadas temporais. As canções deste musical, contudo, têm letras nitidamente contemporâneas e infelizmente um pouco decorativas, contrastando com as canções do período áureo dos musicais de Hollywood, que muitas vezes correspondiam às sequências mais belas e decisivas do filme. Note-se, no entanto, que La La Land não é tão bom nem tão mau como se comentou quando estreou. Não é um filme maçador, apesar do tom escapista e de as questões em que faz pensar estarem bem disfarçadas sob o aparato visual e musical. Os musicais de outrora, como Um Americano em Paris (Vincente Minnelli, 1951), invocado directamente perto do fim, na sequência de história alternativa sobre como poderia ter sido a vida dos protagonistas se tivessem tomado outras decisões, tinham finais inequivocamente felizes. O final de La La Land é ambíguo. Os protagonistas concretizaram os sonhos profissionais, mas só depois de se sacrificarem mutuamente. Não há dúvida de que tanto os tempos que vivemos como os filmes que vemos são outros – resta saber se mais realistas ou simplesmente mais mesquinhos.

14 de maio de 2017

Counting



Visto no IndieLisboa, o documentário Counting (2015), de Jem Cohen, assume a forma de um diário que compila cenas registadas em várias cidades do mundo (por exemplo, Nova Iorque, Moscovo e Istambul – não falta uma curtíssima cena no Porto), dispensando comentários ou qualquer tentativa explícita de contextualização. Fazendo recordar os diários de viagem de Jonas Mekas, Cohen adopta aqui um registo aparentemente neutro e antiprogramático, com elementos esparsos de diário íntimo e de ensaio político-social (por exemplo, a referência às tentativas de construir um centro comercial na praça de Istambul que tem sido cenário de manifestações, ou às escutas levadas a cabo pela National Security Agency, nos EUA, em nome da segurança nacional). A impressão geral é a de um filme a cujas escolhas de montagem, divisão em capítulos e escolha de conteúdos parecem ter presidido critérios bastante híbridos, onde entram, em doses muito variáveis, o gosto pessoal, a coerência estética, a carga afectiva e a consciência política; estes critérios nunca são assumidos e podem parecer opacos ou arbitrários para o espectador. Counting vale também (ou sobretudo) pelas cenas de vida urbana anónima, filmadas com a naturalidade de um turista atento à beleza soturna de ruas enlameadas, parques de diversão cobertos de neve ou fitas magnéticas enroladas em ramos de árvores, que se limita a filmar o que vê como um prolongamento do olhar. Apesar de estarmos longe da complexidade e riqueza do belíssimo Museum Hours (2012), há que saudar a decisão de dar destaque à obra de Jem Cohen na edição deste ano do IndieLisboa.

7 de maio de 2017

Golden Exits


Visto no IndieLisboa, o filme Golden Exits, de Alex Ross Perry (2017), conta com um elenco impressionante, incluindo como protagonistas Emily Browning e Adam Horovitz (mais conhecido como antigo membro dos Beastie Boys), além de Chloë Sevigny, Marie-Louise Parker e Jason Schwartzman, em papéis secundários importantes. É um filme sobre uma família de duas irmãs marcadas por uma figura paterna importante, cuja presença se faz sentir mesmo depois de morrer. O marido de uma delas é um arquivista contratado para organizar o espólio do sogro. A força motriz do filme é a chegada a Nova Iorque de uma rapariga australiana, seleccionada para trabalhar como assistente estagiária do arquivista, e que ajuda a colocar em perspectiva a vida das outras personagens. Golden Exits tem algumas características interessantes e outras maçadoras. O mais interessante é a abordagem à actividade arquivística – a cave onde os arquivistas trabalham, as suas rotinas e conversas profissionais, os seus gestos – e o modo como o tópico se articula com as dificuldades que todas as personagens sentem em arquivar alguns acontecimentos das próprias vidas. O menos interessante é tratar-se de mais um filme com personagens em crise de meia-idade debatendo-se com dificuldades de relacionamento afectivo e interpessoal. A incapacidade que estas revelam de reagir aos problemas de primeiro mundo em que se afundam é explorada por meio de abundantes close-ups e diálogos pesados e literários. Golden Exits lembra um pouco o filme Interiors, de Woody Allen (1978), mas tem menos subtileza e mais artificialidade. Tal como Listen Up Philip (2014), é um filme com um só tom, mas enquanto a terceira longa-metragem deste realizador tem personagens mais combativas e aguerridas, a quinta desenrola-se numa atmosfera de melancolia introspectiva, raramente equilibrada por qualquer assomo de ironia ou sentido de humor, o que se torna exasperante em certos momentos.