18 de dezembro de 2022

O Trio em Mi Bemol

O Trio em Mi Bemol, de Rita Azevedo Gomes (2022), visto no cinema pelo Cinéfilo Preguiçoso, garante uma pausa redentora no frenesi irracional da quadra natalícia. Neste filme tranquilo e luminoso, rodado numa casa desenhada por Siza Vieira em Moledo (Caminha), Rita Azevedo Gomes adapta a única peça que Éric Rohmer escreveu para o teatro. Protagonizada por Pascal Greggory e Jessica Forde na encenação original de Rohmer, esta peça sobre sete encontros de um casal ao longo de um ano estreou em 1987, em pleno período das Comédias e Provérbios – no mesmo ano estrearam O Amigo da Minha Amiga (que faz parte desta série) e também Quatro Aventuras de Reinette e Mirabelle. É inegável que se trata de um texto distintivamente rohmeriano, centrado em duas personagens que negociam uma relação através das palavras, mas nem sempre dizendo toda a verdade. As duas personagens já foram um casal, mas, depois de terminarem a relação, continuam a encontrar-se por uma questão de “amizade” e para discutirem as novas aventuras sentimentais da protagonista. Curiosamente, Rita Azevedo Gomes, apesar de trabalhar com esta influência tão forte, não faz um filme rohmeriano. O ritmo de Rohmer é perturbado e transfigurado por dois elementos principais. Em primeiro lugar, a realizadora transforma a peça num filme dentro do filme: os confrontos verbais entre os protagonistas são pontuados por momentos em que os actores ensaiam ou conversam, a equipa técnica trabalha e a assistente de realização tenta organizar o realizador (interpretado pelo espanhol Ado Arrieta, realizador na vida real, a quem a Cinemateca dedicou uma retrospectiva em Junho), que, como uma espécie de figura divina incompreensível, dá umas instruções vagas e exige repetições constantes por mero capricho, entre algumas sequências mais oníricas. Esta componente cria um contraponto, algo misterioso e abstracto, à peça propriamente dita. Em segundo lugar, a interpretação e o desempenho dos actores são muito diferentes. Nos papéis principais do filme de Rita Azevedo Gomes, Rita Durão e Pierre Léon (também ele realizador, além de actor e crítico) parecem muito menos fúteis e imaturos do que as típicas personagens rohmerianas. Na encenação de Rohmer da sua própria peça (por ele mesmo registada em filme), Pascal Greggory é mais agressivo e ciumento e menos distanciado do que Pierre Léon; Jessica Forde parece ter bem menos densidade do que Rita Durão. O ritmo do filme de Rita Azevedo Gomes talvez seja mais mozartiano e, dir-se-ia até, mais bergmaniano do que rohmeriano: aliás, numa estante da casa, há um fotograma de Sarabanda (Ingmar Bergman, 2003), filme que é precisamente sobre um casal que se reencontra, destacando o momento em que Liv Ullmann e Erland Josephson se encaram, numa posição que Rita Durão e Pierre Léon replicam durante o filme. Uma das questões mais importantes da discussão entre os protagonistas de Rohmer é o ritmo. O protagonista diz várias vezes que duas pessoas só podem amar-se se gostarem da mesma música, porque a música tem uma dimensão física, relacionada com o ritmo dos corpos. Além disso, a possibilidade de reconciliação entre os dois protagonistas depende da resolução de um mal-entendido musical. Na medida em que consegue fazer um filme totalmente diferente daquele que Rohmer faria, fiel à peça original, mas com espaço para invenções formais, Rita Azevedo Gomes demonstra a importância do ritmo, dando assim uma resposta pessoal em forma de filme à questão com que as personagens se debatem.

O Cinéfilo Preguiçoso vai fazer uma pausa, mas voltará em 2023. Boas festas para todos.

Outros filmes de Rita Azevedo Gomes no Cinéfilo Preguiçoso: Frágil como o Mundo (2001); Correspondências (2016); A Portuguesa (2018).

11 de dezembro de 2022

Decisão de Partir | Master Gardener


Há muitos filmes que falham porque são simplesmente medíocres. Sobre esses, não há muito a dizer. Pelo contrário, é quase sempre instrutivo tentar perceber por que motivo filmes artisticamente ambiciosos ficam aquém do que poderiam ser. No recente festival LEFFEST, o Cinéfilo Preguiçoso viu Decisão de Partir (2022), de Park Chan-Wook (já em exibição nas salas), e Master Gardener (2022), de Paul Schrader. O filme de Park é um thriller sobre um detective que se apaixona pela principal suspeita de um homicídio. O argumento intrincado faz lembrar Vertigo (1958), pela maneira obsessiva como o detective vigia a mulher e também por causa da reaparição desta ao fim de algum tempo, proporcionando uma segunda oportunidade para a obsessão se manifestar. O problema é que, se excluirmos esta colagem cinéfila (intencional ou não), que aliás pouco tem de original, Decisão de Partir se reduz praticamente a um thriller engenhoso, dotado de uma sucessão de reviravoltas e pormenores que acabam por cansar. Nisto, aliás, está alinhado com a maioria dos filmes deste género no cinema contemporâneo: a intenção de construir um enigma refinado e ambíguo com facetas que vão sendo reveladas a pouco e pouco, num jogo do gato e do rato com as expectativas do espectador, sobrepõe-se quase sempre à substância. Sai-se destes filmes com a sensação de que nada acrescentam nem ao mundo nem ao cinema. Master Gardener centra-se num jardineiro encarregado de ensinar o seu ofício à sobrinha-neta da viúva abastada para quem trabalha, mas que acaba por se envolver romanticamente com a primeira. É mais uma variação do tema que Schrader explora há décadas como realizador e argumentista: um homem (nunca uma mulher, curiosamente) assombrado por um segredo ou desgosto no seu passado e/ou pela consciência de viver numa sociedade corrupta, e que, no cumprimento da sua profissão (taxista, sacerdote, jogador), se envolve com alguém que o leva a sentir a necessidade de levar a cabo um acto violento e radical. O Cinéfilo Preguiçoso já explicou numerosas vezes que nada tem contra cineastas que se repetem. No entanto, devido a esta insistência numa receita invariante, o filme corre o risco de resvalar para a irrelevância ou para a autoparódia, sobretudo se a comparação com as obras anteriores for desfavorável. O argumento de Master Gardener é mais incoerente do que os de No Coração da Escuridão (2017) e The Card Counter (2021); Joel Edgerton, no papel de jardineiro com um passado de violência e activismo nazi, não está ao nível de Ethan Hawke nem de Oscar Isaac; o terço final do filme parece escrito à pressa e é pouco convincente; a relação entre o jardineiro e a jovem discípula carece de credibilidade. Apesar de a primeira metade de Master Gardener, em que vemos o jardineiro entregar-se às suas actividades meticulosas e à relação ambígua com a dona dos jardins, ser sóbria e bem conseguida, estas falhas transmitem a impressão de que Schrader começa a ficar sem ideias e alternativas para contar mais uma vez a sua história predilecta. Em conclusão, podemos dizer que há muitas maneiras de falhar um filme, que podem ter a ver, no caso Park Chan-Wook, com a falta de originalidade e, no caso de Schrader, com a obstinação de trabalhar sempre a mesma fórmula. É mais uma razão para admirarmos as improváveis obras-primas com que, afortunadamente, nos deparamos de vez em quando.
 
Outros filmes de Paul Schrader no Cinéfilo Preguiçoso: No Coração da Escuridão (2017), The Card Counter (2021).

27 de novembro de 2022

Ruído Branco

Visto no LEFFEST, Ruído Branco (Noah Baumbach, 2022) adapta o romance de Don DeLillo com o mesmo título, acompanhando o quotidiano de uma família (chefiada por uma Greta Gerwig e um Adam Driver de meia-idade), que, devido ao derrame de uma substância tóxica (ou à sua simulação), tem de sair de casa para proteger a vida. Apesar de se basear num livro publicado nos anos oitenta e de a acção se situar nessa década, pode ser descrito como um filme da pandemia, na medida em que, de acordo com o próprio Baumbach, foi concebido durante essa fase, em que, como estas personagens, vivemos um período quase apocalíptico e tivemos de nos confrontar com a nossa própria mortalidade. Não sabendo se alguma vez as pessoas poderiam voltar às salas de cinema, Baumbach reagiu dando total liberdade à imaginação, sem qualquer preocupação financeira. O resultado é um filme barroco e grandioso, mais espirituoso, agressivo e carregado do que aqueles que fez antes. Para os que conhecem e gostam do Baumbach mais intimista, é uma grande surpresa, mas Ruído Branco é de tal modo avassalador, que não dá oportunidade ao espectador para sentir cepticismo. E é avassalador por vários motivos. Em primeiro lugar, por adaptar um romance visionário, que muitos consideravam inadaptável, explorando eximiamente os seus diálogos hiperintelectualizados, o humor negro, a perigosa proximidade entre teoria, ficção, simulação e realidade, o contágio entre as palavras e as coisas, e também o fascínio pelo excesso de informação, que muitas vezes conduz à desinformação. Em segundo lugar, por ser, mais do que uma adaptação hábil, um filme em que são trabalhados e assimilados, nem sempre de modo totalmente irónico, diversos modelos cinematográficos importantes, como filmes-catástrofe, filmes com perseguições de carros, filmes sobre o mundo universitário, ou filmes dos anos oitenta, destacando-se Spielberg e David Lynch como referências importantes. Saliente-se também que Baumbach costuma contar com a colaboração de um coreógrafo e, além da já famosa sequência final no supermercado, ao som da música dos LCD Soundsystem, Ruído Branco, com banda sonora de Danny Elfman, integra algumas características da tradição do musical, sobretudo graças aos diálogos e ao ritmo da narração. Talvez seja o filme mais americano de Noah Baumbach, porque se apropria de todas as tradições desse cinema, e até da própria noção literária de “Great American Novel”, para produzir uma obra que, ainda assim, continua a ser tipicamente baumbachiana, na medida em que é, acima de tudo, uma investigação sobre a ansiedade. Pensávamos que tínhamos perdido Noah Baumbach para a Netflix, mas, felizmente, este filme tem estreia prevista em sala, na segunda semana de Dezembro.

Outros filmes de Noah Baumbach no Cinéfilo Preguiçoso: Enquanto Somos Jovens (2014); Mistress America (2015).

Nota: na próxima semana não haverá actualização do Cinéfilo Preguiçoso, mas prevemos retomar o ritmo habitual na semana seguinte.

20 de novembro de 2022

Diário de Um Romance Passageiro

No cinema francês é costume falar-se muito. Tem sido uma característica imutável, de Renoir a Desplechin, passando por Rohmer, Pialat e muitos outros. No cinema de Emmanuel Mouret fala-se ainda mais, se possível, do que na esmagadora maioria dos filmes franceses contemporâneos. Essa prolixidade é muito mais do que uma questão de palavras por minuto de película: em Mouret, a comunicação verbal entre as personagens sobrepõe-se ao enredo e serve de contraponto a acções que não são mostradas ou que ficam por praticar. Em Diário de Um Romance Passageiro (2022), estreado recentemente nas salas portuguesas, as duas personagens principais passam quase todo o tempo a falar. Os diálogos servem para os protagonistas se conhecerem, depois do encontro fortuito numa festa, e permitem a sua aproximação sentimental, mas têm o efeito secundário de os desencorajarem de irem mais longe na sua relação, como se o fluxo verbal se convertesse em sucedâneo da acção ou da decisão que seria necessária para transformar uma ligação supostamente passageira num compromisso mais sério. Há momentos em que os desejos e receios não verbalizados parecem prestes a vir ao de cima. Mouret assinala-os de forma muito explícita, recorrendo a pausas estratégicas no fluxo verbal ou a grandes planos súbitos. São estratagemas formais pouco originais, próprios de um cineasta que não está obcecado com a inovação. Bem pelo contrário, ao longo da sua carreira, Mouret tem adoptado um registo clássico, mas apurando a arte de levar esse registo a extremos de requinte e complexidade, por detrás de uma aparência de banalidade. Isto seria impossível sem a participação de actores de excelência. Neste filme, em que há uma curiosa troca de papéis associados ao imaginário masculino e feminino, os protagonistas são interpretados por Sandrine Kiberlain, uma das actrizes mais inteligentes da sua geração, e por Vincent Macaigne, que tem vivido muito da sua persona desajeitada, desgraciosa e dada a caprichos, mas que apresenta aqui um desempenho contido e plenamente convincente. Emmanuel Mouret é um dos realizadores franceses no activo mais interessantes. É bom constatar que as suas obras vão tendo visibilidade em Portugal. Dos filmes do início da sua carreira, muitas vezes com o próprio realizador no papel principal, marcados pela pseudoingenuidade e por um sentido de humor minimalista, até aos mais recentes, cada vez mais depurados, Mouret propõe uma crónica subtil das confusões e contradições sentimentais que a vida em sociedade produz. De certo modo, todos os seus filmes poderiam intitular-se, como o anterior a este, As Coisas que Dizemos, as Coisas que Fazemos (2020), já que todos exploram a interacção conflituosa dos gestos e as palavras, que, no fim de contas, é a matéria-prima do cinema.
 
Outros filmes de Emmanuel Mouret no Cinéfilo Preguiçoso: As Coisas que Dizemos, as Coisas que Fazemos (2020), Caprice (2015).

13 de novembro de 2022

Uma Bela Manhã

Desta vez, o Cinéfilo não foi nada preguiçoso. Na Festa do Cinema Francês, viu não só Frère et Sœur (Arnaud Desplechin, 2022), mas também, cerca de trinta minutos depois, Uma Bela Manhã (Mia Hansen-Løve, 2022). Nem sequer houve tempo para jantar, mas valeu totalmente a pena, porque são dois filmes excelentes – e muito corajosos, cada um à sua maneira. Desplechin não hesitou em enfrentar dramaticamente as forças negras e negativas que ligam e separam algumas pessoas, realizando um filme de uma intensidade e tensão impressionantes, também por abdicar de propor qualquer explicação narrativa para o conflito no centro do enredo. Mia Hansen-Løve aborda de frente um tema importantíssimo para todos nós, mas que não tem sido muito explorado no cinema: a reacção dos filhos perante a velhice, a doença e a morte dos pais. Enquanto o filme de Desplechin se desenvolve num plano quase mítico, o de Hansen-Løve, como é típico da obra da realizadora, situa-se na vida quotidiana da protagonista, Sandra Kienzler (Léa Seydoux), uma tradutora-intérprete que é filha de Georg Kienzler/Pascal Greggory, um professor de filosofia a quem é diagnosticada uma doença neurodegenerativa rara. Estamos habituados a que nos filmes de Hansen-Løve a vida continue, por muito difícil que isso seja: Sandra tem de trabalhar, andar de transportes públicos, ser mãe e resolver uma ligação sentimental problemática, enquanto lida não só com a dor e o luto antecipado causados pela doença do pai, mas também com as questões práticas associadas a este problema (por exemplo, a transferência do pai para diferentes lares temporários, ao sabor dos ditames da burocracia e das listas de espera). O alívio cómico do filme é assegurado pela mãe da protagonista (Nicole Garcia), com as suas aventuras no activismo e nas manifestações parisienses. Todo este contexto é abordado com uma honestidade desarmante e sem o menor sentimentalismo: a dada altura, a protagonista explica que encontra mais o pai nos livros dele do que no corpo afectado pela doença. Léa Seydoux é uma actriz tão requisitada no cinema actual, que às vezes, à semelhança do que aconteceu com alguém como Jeanne Moreau em determinada fase da sua carreira, nos cansa um pouco, mas neste filme tem uma prestação absolutamente inesquecível, conseguindo um equilíbrio entre o estoicismo e a racionalidade da personagem, por um lado, e as emoções que esta nem sempre consegue reprimir. A própria realizadora explicou que escolheu Pascal Greggory porque, sendo um actor rohmeriano e portanto associado às palavras no cinema, lhe interessava ver como ele resolveria o problema de uma personagem que perde as palavras; o histrionismo seria uma solução fácil, mas, felizmente, não estamos no cinema americano. Desplechin e Hansen-Løve são dois realizadores que, mesmo tendo um guião idêntico, fariam um filme totalmente diferente. Ambos, no entanto, mostram que trabalhar questões próximas da autobiografia ou da autoficção é, não um exercício solipsista e ocioso, mas sim usar o cinema como instrumento de verdade para reflectir sobre os assuntos mais importantes.

Outros filmes de Mia Hansen-Løve no Cinéfilo Preguiçoso: Éden (2014); L'Avenir (2016); Maya (2018); A Ilha de Bergman (2021).