27 de março de 2022

Mães Paralelas

Pedro Almodóvar nunca deixou de explorar as convenções, as ferramentas e o registo do melodrama, e tem conseguido fazê-lo quase sempre de maneira interessante e original. Com o tempo, a sua tendência para a provocação e a exuberância visual trash deram lugar a uma certa sobriedade, sem romper a continuidade temática e estética. Essa tendência não tem posto em causa o interesse dos filmes: basta olhar para os dois últimos, A Voz Humana (2020) e Dor e Glória (2019), ambos notáveis e ricos em momentos de fortíssima intensidade dramática. Mães Paralelas (2021), visto esta semana no videoclube de uma operadora de telecomunicações, contrasta pela negativa com a restante obra do realizador. O argumento e as personagens são tipicamente almodovarianos, mas fica-se com a sensação de que o cineasta explora a vertente melodramática através dos esquemas e linguagem da ficção televisiva, o que conduz a um resultado final surpreendentemente pobre em intensidade e pujança emocional. Talvez o que mais desilude seja o facto de quase todas as cenas serem meramente funcionais, servindo apenas para fazer avançar a narrativa. O enredo principal, assente na troca dos bebés das duas personagens principais, Janis e Ana (Penélope Cruz e Milena Smit), é pouco credível mas poderia perfeitamente servir de base a um bom filme de Almodóvar. A maneira pouco inspirada como é tratado, assim como a falta de interesse dos enredos secundários, sugerem que Mães Paralelas funcionaria melhor como série, com mais tempo para o aprofundamento de narrativas que, em duas horas, resultam superficiais. Um bom exemplo disto mesmo é a relação entre Ana e a mãe, francamente desinteressante porque descrita de modo demasiado fugaz e convencional. Talvez o aspecto mais interessante do filme seja a integração do tema da memória histórica e a sua intersecção com o percurso pessoal das personagens. Mães Paralelas termina com numerosas questões por resolver e incógnitas quanto ao futuro das relações entre Janis, Ana e o antropólogo que foi pai da sua filha desaparecida. No entanto, transmite a ideia de que a abertura da vala onde estão os restos mortais do seu bisavô e outros habitantes da sua aldeia, massacrados durante a Guerra Civil, trouxe a paz necessária para, uma vez resolvidas as feridas do passado, trabalhar para entender o presente e construir o futuro. Não faltam a Mães Paralelas os elementos na base de muito grandes filmes de Almodóvar; estão ausentes, no entanto, o toque pessoal e a energia criativa que distinguem o cinema deste realizador. Esperemos que voltem no próximo filme.
 
Outros filmes de Pedro Almodóvar no Cinéfilo Preguiçoso: A Voz Humana (2020), Dor e Glória (2019), Julieta (2016), Os Amantes Passageiros (2013).

20 de março de 2022

Jour après jour | Parle-moi encore | Méditerranée

Em Março, a Cinemateca apresenta um ciclo dedicado a Jean-Daniel Pollet (1936-2004), cineasta francês pouco conhecido entre nós que por vezes é associado à Nouvelle Vague, embora não fizesse parte do núcleo duro deste grupo. A obra de Pollet inclui, por um lado, filmes de ficção narrativos, associados ao realismo burlesco e quase sempre protagonizados por Claude Melki, seu actor-fetiche e, por outro, filmes-ensaio em que a montagem e as palavras em voz-off desempenham o papel mais importante. O Cinéfilo Preguiçoso começou por assistir à sessão que associou os filmes Jour après jour (real. Jean-Daniel Pollet e Jean-Paul Fargier, 2006) e Parle-moi encore (Jean-Paul Fargier, 2016), um episódio da série Cinéma, de notre temps dedicado a Pollet em que vemos vários excertos do filme comentados pelo próprio realizador e também por Fargier em voz-off. Jour après jour é um filme póstumo, concebido por Pollet, mas concretizado por Fargier a partir do álbum de imagens que o amigo deixou, depois de durante um ano ter tirado pelo menos uma fotografia por dia na sua quinta em Cadenet, no Sul de França. Depois de, em fins dos anos oitenta, Pollet ter sofrido um acidente em que foi colhido por um comboio quando se preparava para filmar, viu-se obrigado a canalizar para um espaço limitado o impulso para viajar e filmar espaços diferentes que antes caracterizava a sua obra. Neste filme, a reflexão sobre a passagem do tempo é exacerbada pela proximidade da morte. Diversos recantos do interior e do exterior da casa do realizador são fotografados pormenorizadamente, com grande atenção ao jardim, aos animais e à secretária, livros e outros objectos pessoais do realizador, ao som de um texto de Fargier, que, tentando imaginar o que pode passar pela cabeça de um cineasta a preparar o seu último filme, vai explorando uma lista de cinquenta palavras que Pollet lhe facultou. Jour après jour funciona, assim, como espécie de súmula dos filmes-ensaio de Pollet, usando as mesmas técnicas, mas com um centro de atenção mais concentrado. Entre os filmes de Pollet que estão disponíveis no YouTube, o Cinéfilo Preguiçoso ainda viu Méditerranée (1963), que, com um texto de Philippe Sollers enunciado em off, funciona também como uma reflexão sobre a memória e a passagem do tempo a partir dos espaços, pessoas e objectos associados a esta cultura e geografia. Neste filme, é bastante evidente a influência de Alain Resnais, sobretudo da curta Les Statues meurent aussi (1953) e de L’Année dernière à Marienbad (1961). A influência de Resnais é interessante por se tratar de um autor que também se dedicou ao documentário e à ficção, embora em fases diferentes da carreira, ao passo que Pollet manteve sempre as duas facetas. O próprio Pollet reivindica esta influência, salientando que pretende que a montagem dos seus filmes se aproxime das técnicas do nouveau roman, privilegiando relações de analogia e não de contraste. Para quem se interessa pelos temas do tempo e da memória e pela relação entre as palavras e as imagens, Pollet é, sem dúvida, um cineasta com uma obra que vale a pena conhecer.

13 de março de 2022

Diários de Otsoga

Era inevitável que a COVID-19 acabasse por ser incorporada nos enredos das séries e filmes produzidos a partir de 2020. Poucos cineastas o terão feito de forma mais interessante do que Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes, realizadores de Diários de Otsoga (2021), gravado num canal de televisão e visto esta semana. Em 22 secções apresentadas por ordem cronológica inversa, o filme mostra as actividades de uma equipa de filmagem que se instalou numa quinta da região de Sintra para levar avante um projecto centrado em três personagens, interpretadas por Carloto Cotta, Crista Alfaiate e João Nunes Monteiro. A subversão cronológica reflecte bem a distorção da percepção do fluxo do tempo que deverá ter sido comum a todos os que viveram os sucessivos confinamentos pandémicos. A exploração das vicissitudes inerentes às rodagens é um tema recorrente no cinema – recordem-se, por exemplo, A Noite Americana (François Truffaut, 1973) e O Estado das Coisas (Wim Wenders, 1982). Aliás, o próprio Miguel Gomes costuma integrá-lo nos seus filmes, sendo Aquele Querido Mês de Agosto (2008) o exemplo mais notório disso. Talvez seja deste filme que Diários de Otsoga está mais próximo, mas aqui, em vez do processo de descoberta dos costumes alheios e de integração num território vasto (aldeias da Beira durante as férias grandes), temos um grupo confinado pelas necessidades do trabalho e da pandemia, e obrigado a conviver e a adaptar-se a um espaço limitado. Os gestos de reconhecimento desse espaço, povoado por animais, árvores e objectos que exigem um esforço de familiarização, confundem-se com o processo criativo. Nos diálogos hilariantes entre os argumentistas e os actores frustrados, sobressai outro tema recorrente na obra de Miguel Gomes: a interrogação sobre a natureza das personagens da ficção. O processo que leva a que uma mulher ou um homem, pelas acções que executa e pelo facto de uma câmara registar as suas acções, adquira o estatuto de «personagem» é permanentemente questionado. Podemos admitir que a primeira cena de Diários de Otsoga, que é a última na ordem cronológica dos eventos, e que mostra aquilo que parece ser uma cena do filme dentro do filme (uma festa, um beijo, a sugestão de uma reacção de ciúme), indica que esse processo foi concluído com sucesso e que os três actores, assim como conseguiram construir um borboletário na quinta, sofreram a metamorfose implícita no contrato com o espectador de cinema e passaram a ser «personagens» de corpo inteiro, obedientes a um argumento, talvez inspirado no livro de Pavese que é mencionado a dada altura. Mas também é possível que se tenham libertado dos constrangimentos incómodos da equipa de filmagens e sejam apenas o Carloto, a Crista e o João, a fazerem os seus próprios gestos e a viverem as suas vidas. O que é mais extraordinário neste filme é a latitude de leituras que permite e a liberdade que transmite, apesar de ter uma estrutura tão rigorosa: deixar a interpretação em aberto e admitir que não é possível controlar tudo é um acto de coragem, de sensatez e de humildade. Além disso, Diários de Otsoga é um filme belíssimo, repleto de planos e detalhes que ilustram as fricções entre os intervenientes, a natureza e os artefactos de forma repetida, mas sem nunca se tornarem cansativos e gratuitos. Por tudo isto, e por outras razões que não cabem aqui, é um filme que, acima de tudo, respeita a inteligência do espectador. Quem dera que fosse possível dizer uma coisa semelhante sobre a maioria dos filmes.
 
Outros filmes de Miguel Gomes no Cinéfilo Preguiçoso: As Mil e Uma Noites: Volume 1, o Inquieto (2015), As Mil e Uma Noites: Volume 2, o Desolado (2015), As Mil e Uma Noites: Volume 3, o Encantado (2015).

6 de março de 2022

Peeping Tom

Quando Peeping Tom (Michael Powell, 1960) passou recentemente na RTP Memória, o Cinéfilo Preguiçoso aproveitou para gravar. Actualmente é considerado um filme de culto, sobre o qual Martin Scorsese disse que, com Oito e Meio (Fellini, 1963), tem tudo o que há para saber sobre realização. Quando estreou, no entanto, Peeping Tom, suscitou choque e indignação, prejudicando muito a carreira do realizador no Reino Unido. O filme segue a história de Mark Lewis (Carl Boehm), um assassino movido pelo desejo de captar a expressão de medo das vítimas quando percebem que vão morrer. A partir desta situação, que se repete algumas vezes ao longo do filme, é explorada a ideia de que filmar e ver (ou ser espectador) são actos de voyeurismo. Esta ideia é reforçada, para não dizer repisada, através dos vários contextos a que o protagonista pertence: trabalha no cinema e supostamente prepara um documentário; faz fotografias obscenas para venda em quiosques; e é filho de um famoso biólogo que não só estudava o medo, usando o filho como cobaia das suas experiências, que incluíam fazer filmes, como também oferece ao filho a sua primeira máquina de filmar. Em alguns momentos, Mark chega mesmo a comportar-se como uma máquina de filmar: por exemplo, quando oferece uma pregadeira a Helen (Anna Massey), uma jovem bibliotecária que se aproximou dele, Mark replica e regista automaticamente os gestos que ela faz para experimentar o sítio em que a deve prender.  Esta insistência temática torna-se um pouco exasperante e também deve ter contribuído para a condenação moralista do filme na sua época. Falta alguma subtileza ao filme. Um realizador como Alfred Hitchcock trabalhou o mesmo tema com muito mais sofisticação, em Janela Indiscreta (1954), por exemplo. Ainda assim, claro que Peeping Tom é uma obra interessante e alguns dos melhores momentos são aqueles em que vemos os filmes a preto e branco realizados pelo pai do protagonista. Dentro destes filmes, o papel do pai do protagonista é desempenhado pelo próprio Michael Powell, o protagonista enquanto criança é interpretado pelo próprio filho de Michael Powell e a casa é aquela em que Michael Powell cresceu. Além disso, o realizador explicou que um dos motivos pelos quais escolheu Carl Boehm para o papel principal foi o facto de ele ser filho do maestro austríaco Karl Boehm, e portanto saber como era ter um pai prepotente. Não são mostrados apenas os filmes do pai; a inclusão de secções dos filmes do próprio protagonista permite a exploração de diferentes pontos de vista: a perspectiva  do Mark que assiste ao filme, a perspectiva do Mark que realizou o filme, a perspectiva da vítima antes de morrer e a nossa própria perspectiva como espectadores. Em Peeping Tom, temos sempre camadas sobre camadas de significado, para as quais contribuem também duas personagens femininas importantes: além de Helen, que escreveu uma história para crianças sobre uma máquina de filmar, a mãe cega desta, que, pelo facto de ser mais sensível às intenções e à perturbação de que sofre Mark, parece sugerir que a visão não é o sentido mais importante. À primeira vista, Peeping Tom é um filme muito diferente daqueles que Powell fez com Emeric Pressburger nas décadas de 1940 e 1950, como A Vida e a Morte do Coronel Blimp (1943). Enquanto estes filmes com Pressburger são dotados de uma aura universal que os torna quase míticos, na medida em que os mitos nos explicam quem somos, Peeping Tom é um filme quase perversamente pessoal. Apesar disso, também mostra como somos, de um modo arrojado para a época, mas que ainda hoje continua a perturbar.