25 de julho de 2021

A Voz Humana

Esta semana o Cinéfilo Preguiçoso foi ao cinema para ver A Voz Humana, curta-metragem de Pedro Almodóvar (2020), complementada por uma entrevista de Mark Kermode ao realizador e a Tilda Swinton, protagonista do filme, em que se dá também uma breve, mas inesquecível, aparição do gato do realizador. Aproveitando, o facto de estar disponível no YouTube, viu também a adaptação de Rossellini da mesma peça de Jean Cocteau, que em 1948 estreou como primeira secção do filme O Amor, tendo Anna Magnani como protagonista. O filme de Rossellini, preso no quarto e no rosto em sofrimento de Anna Magnani, segue fielmente a peça de 1930 de Cocteau e concentra-se em aprofundar uma só emoção. Quanto ao filme de Almodóvar, além de ser uma adaptação mais livre do texto original, explora outros espaços e outras emoções. Almodóvar parte de uma loja de ferramentas, seguindo depois para o impecavelmente decorado apartamento da protagonista, mas mostrando que este se situa num estúdio do cinema, de que ela sai no fim. Deste modo, sublinha as vertentes de construção, desconstrução e destruição daquele momento, salientando também a vertente mais teatral da relação que termina, bem patente no modo como Tilda Swinton vai experimentando e representando respostas e reacções falsas na conversa ao telefone com o ex-amante, tal como veste e despe roupas diferentes ao longo do filme. O facto de Tilda Swinton ser uma actriz fria e controlada que nunca se deixa totalmente dominar pelas emoções acrescenta novos sentidos ao texto, diversificando a amplitude emocional. Em contraste, o filme de Rossellini é mais claustrofóbico e monotemático, o que talvez o torne mais associado a um determinado estilo de representação típico do cinema italiano daquela época, e, portanto, mais datado também. Na entrevista que acompanha a curta-metragem, o próprio Almodóvar explica que esta personagem o interessa mais enquanto mulher moderna, capaz de resistir e de agir para escapar ao impasse emocional, e não enquanto mulher «submissa», lembrando também que se trata de uma figura que ele trabalhou em vários filmes, nomeadamente em A Lei do Desejo (1987) e Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos (1988). Recordamos também o excelente A Flor do Meu Segredo (1995), com uma protagonista que tem de lidar com o sofrimento do fim de uma relação. Por todos estes motivos, A Voz Humana funciona como súmula sofisticada de vários elementos da obra de Almodóvar. Pode ser um bom ponto de partida para quem nunca viu um filme deste realizador, desde que esses espectadores estejam cientes de que as coisas se descontrolam mais facilmente noutros filmes dele.

18 de julho de 2021

Bem Bom

O cinema português tem pouca tradição de filmes biográficos. É um género complicado, em grande parte devido à necessidade de equilibrar a verdade dos factos e as exigências da narrativa sem ferir as susceptibilidades dos biografados e dos que lhes são próximos. A realizadora Patrícia Sequeira, que já fora responsável por Snu (2019), parece apostada em contrariar esta tendência. O filme Bem Bom (2021), sobre a formação e o percurso ascendente das Doce, revela profissionalismo e competência mas vai além disso: sente-se claramente a paixão e a empatia por esta banda que, criada como um projecto de editora, alcançou um sucesso fulgurante nos anos 80 em Portugal. O trabalho dos actores é muito bom, sem pontos fracos que valha a pena referir, e é graças a isso que as cenas que retratam os primeiros tempos do grupo resultam tão bem: a mistura de afinidades e fricções entre os quatro elementos da banda fica bem clara. Outro dos aspectos positivos do filme é o uso das canções, feito na justa medida para realçar a importância das escolhas musicais no sucesso das Doce, mas sem sobrecarregar o filme. Porém, Bem Bom perde força quando, sobretudo na parte final, tenta tornar explícitas, por meio de monólogos ou diálogos algo artificiais, algumas leituras sociológicas mais duvidosas. Será que as Doce foram um factor decisivo na evolução dos costumes da sociedade portuguesa? Será que foram pioneiras do feminismo? Talvez se possa desenvolver argumentação nesse sentido, mas não pondo na boca de personagens dos anos 80 considerações declamatórias que nos parecem pouco plausíveis quase quatro décadas mais tarde, em retrospectiva. Se as Doce foram um fenómeno de popularidade, isso deveu-se essencialmente ao talento e dedicação das cantoras e à sagacidade de Tozé Brito e daqueles que estiveram por detrás da criação do grupo, que souberam perceber a evolução dos gostos musicais da sociedade portuguesa. Em vez de injectar argumentos contemporâneos nos diálogos, talvez tivesse sido mais eficaz explorar o interessante contexto dos anos 80 em Portugal, e não só meros ecos fugazes deste, como a boçalidade dos espectadores dos concertos ou o boato miserável que implicou uma das artistas. Para concluir, é preciso dizer que, sem enveredar pelo saudosismo, Bem Bom mostra mais uma vez por que razão a música dos anos 80 é objecto de uma fúria revivalista que não dá sinais de esmorecer: mesmo as canções escritas a régua e esquadro para os tops tinham uma espontaneidade, intensidade e frescura que nenhuma década posterior conseguiu reproduzir.

11 de julho de 2021

66 Cinemas

Embora haja alguns filmes interessantes para ver no cinema, o Cinéfilo Preguiçoso, sem coragem para enfrentar o calor, preferiu ver o documentário 66 Cinemas, de Philipp Hartmann (2016), que passou na semana passada na RTP2. Entre 2014 e 2015, Hartmann fez uma digressão por vários cinemas independentes alemães para mostrar o seu filme O Tempo Voa como Um Leão que Ruge (2013), sobre um cineasta que sofre de cronofobia e procura uma maneira de controlar o tempo. Neste percurso, aproveitou para filmar não só estes espaços, mas também as pessoas que os gerem e programam. Ficamos a conhecer um grande número de cinemas, desde uma antiga abadia no meio de nenhures que convoca o público tocando o sino, até salas com a decoração original impecavelmente restaurada, como o Schauburg em Karlsruhe, passando por cinemas multiplex que se atrevem a passar filmes experimentais, além de cinema de autor, cinema de autor medíocre e filmes de grande público. Os programadores e gestores descrevem os seus diferentes currículos, idiossincrasias, filosofias e abordagens, mas todos  referindo, por um lado, preocupações financeiras, sobretudo no que toca à transição entre a película e o digital, e, por outro, a consciência da missão comunitária que desempenham, tendo a noção de que, se não fossem eles, alguns filmes não seriam vistos. A beleza destes espaços e os diferentes modos como as pessoas se situam neles lembram um pouco o livro Abandoned Cinemas of the World, de Simon Edelstein; a vantagem do filme de Hartmann é mostrar cinemas ainda em funcionamento, com pessoas vivas, enquanto no livro de Edelstein observamos apenas os vestígios de uma identidade em dissolução. Obviamente, não sabemos como estes espaços terão conseguido sobreviver à pandemia, mas esperemos que tenham recebido apoios do Estado alemão. O documentário de Hartmann mostra bem como o mundo seria um espaço de maior mediocridade e de homogeneidade asfixiante se as salas de cinema não existissem, e consegue fazê-lo de forma atenta e humana, exaltando o papel das pessoas que exploram as salas, mas sem ceder à tentação de as mostrar como heróis ou personagens quixotescas. A melhor maneira de homenagear o cinema é não esconder nenhuma das suas componentes, incluindo a económica e a social, além da artística, e 66 Cinemas tem o mérito de as incorporar, de forma equilibrada, ao longo do périplo pela Alemanha profunda que nos é mostrado.

4 de julho de 2021

Os Amantes Passageiros

O contraste entre Os Amantes Passageiros (estreado em 2013 e visto esta semana num canal de televisão), de Pedro Almodóvar, e os filmes por este realizados imediatamente antes e depois, como A Pele Onde eu Vivo (2011), Julieta (2016) ou Dor e Glória (2019), é grande. Neste filme, cuja acção se desenrola quase exclusivamente num avião em pleno voo, à espera de uma aterragem de emergência devido a um problema técnico, não existe qualquer pretensão de análise psicológica e a componente (melo)dramática é ligeira e lúdica. Assumidamente, Almodóvar tentou divertir-se, fazendo uma comédia leve e nada mais do que isso. Ainda assim, explora algumas situações e personagens típicas da sua obra. Entre as personagens principais, temos uma vidente que tenta perder a virgindade, um assassino a soldo, uma “dominatrix”, um galã de telenovelas, os pilotos e os assistentes de bordo (as hospedeiras passam a viagem sedadas, assim como os passageiros de classe turística), todos envolvidos numa teia complicada de relações sentimentais sobre um pano de fundo de orientações sexuais ambíguas ou não assumidas. Há alguns aspectos interessantes em Os Amantes Passageiros, como a exploração dos lugares-comuns do filme de catástrofe aérea e o contraste entre a estética camp e espalhafatosa e o ambiente asséptico e os protocolos rígidos do transporte aéreo. Contudo, é preciso reconhecer que, mesmo no registo de comédia pura, Almodóvar não esteve particularmente inspirado e perdeu inúmeras oportunidades de tornar o filme mais subtil, visualmente mais arrojado ou simplesmente mais divertido. A única parte do filme que se passa fora do avião é um pequeno segmento que nos restitui fugazmente os ambientes e temas mais característicos deste realizador: interiores urbanos, coincidências, casos românticos mal resolvidos, o desequilíbrio mental como consequência última dos amores frustrados. Esta breve incursão funciona como balão de oxigénio em relação ao ambiente opressivo da cabina do avião e pode ser uma maneira de Almodóvar nos mostrar que, no meio deste parêntesis, continua fiel às fundações do seu cinema. Os Amantes Passageiros é um filme menor, mas nem sequer é um daqueles “filmes menores” que, pelo diálogo que estabelecem com as obras ditas “maiores” de um cineasta, valorizam a filmografia deste no seu todo (como sucede, por exemplo, no caso de Éric Rohmer), mas vê-se com agrado e sem a necessidade de se estar atento a uma eventual mensagem, grave e pungente, sobre a condição humana.