30 de maio de 2021

O Jardim dos Finzi-Contini

O Cinéfilo Preguiçoso comprou o DVD de O Jardim dos Finzi-Contini (Vittorio de Sica, 1970) depois de ler o romance de Giorgio Bassani que o inspirou. O enredo gira em torno das aventuras de um grupo de jovens em Ferrara, imediatamente antes e durante a Segunda Guerra Mundial, na altura em que o governo de Mussolini impõe as leis de discriminação racial contra os judeus. Enquanto o livro é uma obra-prima de contenção e subtileza, o filme, embora captando bem o isolamento e a atmosfera quase de conto de fadas da casa e do jardim dos Finzi-Contini, sublinha as circunstâncias históricas relacionadas com a aproximação da guerra e a perseguição anti-semita, tornando antecipadamente claros alguns elementos trágicos que os leitores só percebem no fim do livro. A aparente atmosfera de ócio, convívio e prazer destes jovens no Verão, com as relações quase proustianas que os unem e separam, entre diferenças sociais, políticas e raciais, é gradualmente substituída pelas preocupações e consequências da História. Instala-se uma sensação de incerteza, de espera e de desperdício que põe em suspenso as vidas das personagens e de outros italianos, acabando por as destruir. Um dos trunfos tanto do livro como do filme é a ambiguidade da relação de duas personagens principais (Micol Finzi-Contini/Dominique Sanda e Giorgio/Lino Capolicchio). Micol diz-se incapaz de ter uma relação amorosa com Giorgio, apesar de serem próximos desde a infância e de existir uma atracção clara entre eles; cabe ao leitor/espectador reflectir sobre as razões desta impossibilidade: excesso de proximidade entre os dois, diferenças de classe, percepção da ausência de futuro. Num dos momentos mais belos do filme e do livro, Micol comenta com Giorgio que os dois são iguais porque para eles conta mais a memória das coisas do que a sua posse – têm «o vício de avançar com a cabeça voltada para trás». Todo o filme se caracteriza por esta nostalgia por um tempo e um lugar que se sente já estarem perdidos, apesar de ainda não terem desaparecido. Vittorio de Sica reconstitui bem tanto a esfera individual como a esfera colectiva deste período negro da Itália e da Europa. O Jardim dos Finzi-Contini foi premiado com o Urso de Ouro do Festival de Berlim e também com o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, o quarto filme deste realizador a receber esta distinção (embora no caso dos dois primeiros, Sciuscià e Ladrões de Bicicletas, de 1946 e 1948, tivessem sido prémios especiais, atribuídos antes de esta categoria se tornar oficial). Não é um dos filmes mais amados de Vittorio de Sica, talvez por cultivar uma atmosfera algo telenovelesca que está ausente do livro. Vendo-o agora, sentimos que se move num território que Luca Guadagnino tem explorado em filmes como Eu Sou o Amor (2009) ou Chama-me pelo Teu Nome (2017). Não seria surpreendente que Guadagnino um dia fizesse um remake deste título; se isso acontecer, esperemos que não o complique tanto como complicou Suspiria (2018).

23 de maio de 2021

A Estrada

Depois do visionamento recente do documentário Bergman – Um Ano, Uma Vida (2018), o Cinéfilo Preguiçoso estava com vontade de ver um filme de Ingmar Bergman, mas um conjunto de circunstâncias inopinadas – ou seja, a constatação de que afinal não tinha o DVD do filme que queria ver – levou a que optasse, em vez disso, por uma longa-metragem de Federico Fellini gravada recentemente na televisão. A Estrada (1954) é frequentemente considerado uma das obras-primas deste realizador, ou até mesmo o ponto alto da sua carreira. Visto em 2021, à luz da sua filmografia ulterior, A Estrada impressiona pela segurança formal e pela maneira como Fellini gere o sentimentalismo inerente ao argumento sem cair na lamechice, mas sente-se que o cineasta ainda estava à procura do modo de expressão mais apropriado. O registo melodramático que Fellini adopta aqui foi rapidamente preterido em favor de um cinema mais voltado para a expressão pictórica e narrativamente fluida das suas obsessões e memórias, com o sucesso conhecido. Contudo, A Estrada está muito longe de ser um filme menor. É uma história relativamente linear, baseada num dos esquemas narrativos mais populares entre os argumentistas (e que frequentemente dá origem a filmes pretensamente humanistas, mas insuportavelmente hipócritas): a tensão entre duas personagens que o destino junta e que parecem incompatíveis – Gelsomina (o papel da vida de Giulietta Masina) e Zampanò (Anthony Quinn). O percurso destes dois artistas de rua pelas paisagens suburbanas de uma Itália a meio caminho entre a destruição da Segunda Guerra Mundial e a prosperidade dos anos 60 e 70 é mostrado com uma sobriedade própria do neo-realismo, mas também com toques de lirismo que remetem para a fase mais tardia da obra felliniana: por exemplo, os três músicos que irrompem no plano quando Gelsomina está à beira da estrada, e que a conduzem ao circo onde conhecerá o “Louco”, personagem que acabará por precipitar a ruptura com Zampanò. No entanto, é pouco útil esmiuçar A Estrada em busca de elementos que anunciem os filmes que se lhe seguiram: é inegável que vale por si e é uma prova de maturidade artística, independentemente de se achar (como é o caso do Cinéfilo Preguiçoso) que foi também uma etapa no trajecto rumo às obras-primas que Fellini viria a realizar, com maior experiência e noção dos meios ao seu alcance para se exprimir. Pegando numa ideia de Bergman – Um Ano, Uma Vida, pode afirmar-se que, tal como Bergman, Fellini teve de perceber que a melhor maneira de fazer cinema consistia em filmar os seus traumas e os seus fantasmas, em total liberdade.
 
Outros filmes de Federico Fellini no Cinéfilo Preguiçoso: Julieta dos Espíritos (1965); A Voz da Lua (1990). 
 

16 de maio de 2021

Heat – Cidade Sob Pressão

O Cinéfilo Preguiçoso nunca tinha visto Heat – Cidade Sob Pressão (Michael Mann, 1995), mas, recordado deste título por uma lista dos melhores filmes dos anos noventa, viu-o esta semana (em DVD). Em Abril (1998), a personagem de Nanni Moretti descreve Heat à mãe mais ou menos com estas palavras: é um filme sobre um polícia e um criminoso, o criminoso mata trezentas pessoas, depois os dois encontram-se e comentam: somos iguais, amamos a nossa profissão. Com efeito, há vários elementos infantis, estereotipados e convencionais em Heat, embora não seja tão mau como o Cinéfilo Preguiçoso imaginava. O filme deu que falar por reunir pela primeira vez dois actores icónicos: Al Pacino e Robert De Niro já tinham participado no mesmo filme (O Padrinho – Parte II), mas as respectivas personagens viviam em épocas diferentes e nunca se encontravam. Em Heat, Al Pacino é o polícia que persegue Robert De Niro, um especialista em assaltos a bancos e carrinhas de transporte de valores. Al Pacino cultiva o seu registo habitual (gritaria e histrionismo, para os que antipatizam com ele), Robert De Niro assume uma personagem maximamente perfeccionista que lhe permite ser o mais contido possível. Como Moretti salienta ironicamente, Michael Mann explora a ideia de que um é o reverso do outro; são ambos obcecados com o que fazem e não se imaginam noutra vida; os colaboradores são encarados praticamente como família; as mulheres com que vivem, em vez de serem coadjuvantes, são uma espécie de oponentes, pelo facto de tentarem arrastá-los para uma existência vagamente normal, quando eles, na verdade, não se interessam por mais nada a não ser pela profissão (embora seja graças à lealdade da mulher que a personagem de Val Kilmer acaba por escapar à detenção); de vez em quando há umas tiradas supostamente líricas sobre estes modos de vida. Apesar de o enredo de Heat ter sido inspirado por acontecimentos reais, as personagens são quase metacinematográficas, na medida em que lembram mais figuras de outros filmes com temáticas equivalentes do que pessoas de carne e osso. Já vimos tudo isto até à exaustão em vários filmes americanos, incluindo o companheirismo viril entre parceiros do crime, a identificação quase mórbida entre presa e perseguidor, e o desejo de evasão e regeneração por parte do criminoso, adiado por um último trabalho que acaba por ser fatal e proporcionar uma cena final grandiosa. Heat é sempre melhor quando as personagens fazem coisas, em vez de fingirem que têm psicologia. Michael Mann é exímio a explorar o espaço onde os actores se movem: Los Angeles, enquanto cidade de espaços interiores e exteriores em que há sempre alguém a vigiar alguém, não só desempenha um papel importante, como é uma das personagens mais interessantes do filme. Por este motivo, as pessoas que gostam de cidades, mesmo que não tenham grande paciência para os arquétipos simplistas de algum cinema americano, poderão ter a surpresa de gostar deste filme.

9 de maio de 2021

Bergman – Um Ano, Uma Vida

Visto na televisão, Bergman – Um Ano, Uma Vida (2018) é um documentário sobre Ingmar Bergman realizado por Jane Magnusson, co-autora de Trespassing Bergman (2013), outro documentário sobre o mesmo realizador já abordado pelo Cinéfilo Preguiçoso. A julgar por estes dois filmes, que aliás não são os únicos que Magnusson dedicou ao cineasta sueco mais famoso de sempre, fica-se com a ideia de que a documentarista nutre uma admiração sincera pela obra de Bergman, mas que tem dificuldade em imprimir às suas abordagens a originalidade que lhes permitiria distinguirem-se da mediania. Bergman – Um Ano, Uma Vida centra-se em 1957 e desenvolve a tese de que este foi um ano-chave para o cineasta. Tratou-se de um período extremamente produtivo, incluindo as estreias de dois dos seus filmes mais conhecidos (O Sétimo Selo e Morangos Silvestres) e várias produções teatrais e rodagens, tudo isto enquanto Bergman lidava com uma vida pessoal e amorosa caótica. Magnusson postula que foi em 1957 que Bergman percebeu que a única maneira de superar, ou pelo menos de gerir, as suas neuroses e de criar uma obra válida seria explorar essas mesmas neuroses e angústias como tema principal dos seus filmes subsequentes, tendo essa constatação  permitido que ele se exprimisse em total liberdade e alcançasse fama mundial. Esta tese é defendida de forma razoavelmente convincente, mas o filme seria mais interessante se explorasse com maior profundidade os acontecimentos do ano em questão. Não é isso que acontece: o produto final é um documentário convencional, repleto de imagens de arquivo, excertos de filmes e depoimentos, que abrangem toda a vida de Bergman e que transmitem uma imagem próxima daquela que é amplamente conhecida, embora com alguma informação nova sobre o lado mais sombrio e agressivo deste realizador e encenador (simpatias nazis, violência doméstica, abusos de poder). Em Trespassing Bergman, apesar das reservas que exprimimos, é preciso reconhecer que as intervenções de alguns realizadores e a sugestão de voyeurismo associada à exploração da casa do cineasta lhe conferem interesse e consistência enquanto objecto cinematográfico. Bergman – Um Ano, Uma Vida funciona como introdução a uma obra riquíssima e complexa e esboça algumas ideias que mereceriam ser mais desenvolvidas, mas não passa disso.
 

2 de maio de 2021

Visita ou Memórias e Confissões

O Cinéfilo Preguiçoso não ia à Cinemateca desde 16 de Fevereiro de 2020 – ou seja, noutra vida. Esta semana, no entanto, conseguiu ver Visita ou Memórias e Confissões (Manoel de Oliveira, 1982) na sala M. Félix Ribeiro! Mesmo em relação ao filme, é caso para exclamar: «Finalmente!» Foi realizado em 1982, mas Oliveira não quis que fosse visto antes da sua morte (em 2015), e o Cinéfilo Preguiçoso só agora teve oportunidade de assistir em sala a uma das poucas sessões em que tem sido projectado. Oliveira realizou Visita ou Memórias e Confissões quando, para pagar dívidas e poder continuar a filmar, teve de vender a casa que ele próprio mandara construir no Porto e em que tinha vivido com a família durante cerca de quarenta anos. Neste filme temos várias dimensões: o relato (um texto de Agustina Bessa-Luís) de dois visitantes imaginários (interpretados por Teresa Madruga e Diogo Dória, de quem só ouvimos as vozes) vagueando pela casa e reagindo com estranheza ao espaço; a narração de alguns episódios da vida do realizador pelo próprio, enquanto espírito ou fantasma da casa, sem preocupações de linearidade e coesão biográfica e omitindo até determinados lugares-comuns (como o desporto, as corridas de carro, etc.) sobre o assunto; alguns comentários metacinematográficos e supostamente histórico-filosóficos  do realizador sobre os temas principais da sua obra; e uma breve aparição, igualmente fantasmagórica, de Maria Isabel, mulher do realizador, enunciando algumas palavras (provavelmente ditadas por Oliveira) no jardim, rodeada de dálias. Há também uma incursão a uma quinta no Douro onde Oliveira passou várias temporadas e onde foi visitado por André Bazin e José Régio, entre outros. Os momentos mais belos do filme são aqueles em que se mostra o espaço da casa em articulação com as palavras de Agustina, bem como o contraste que depois se estabelece entre estes e o discurso de Oliveira, despedindo-se desse lugar e de uma parte importante da sua vida. Os menos conseguidos e mais datados são as reflexões do realizador sobre a sua própria obra e sobre tópicos como Deus, a mulher e a pureza (que geraram até algum riso na sala): se necessário fosse, demonstrariam que, no cinema, a obra é sempre mais importante do que as palavras, os programas e as intenções. Não se pode propriamente dizer que ver Visita ou Memórias e Confissões seja essencial para compreender a obra do realizador (não inclui revelações extraordinárias), mas, devido à estranheza, à intensidade e ao sofrimento não verbalizado daquele momento na vida de Oliveira, é um filme muito invulgar. A estranheza é reforçada não só pelos comentários das personagens de Agustina, mas também pelo facto de nós, enquanto espectadores do futuro, sabermos mais sobre Oliveira do que ele próprio sabia naquela altura. Durante o filme, o realizador lembra que tem 73 anos e que viveu a melhor parte da sua vida naquela casa, sugerindo que começa a fazer ali uma espécie de preparação para a morte (embora fale daquele que ele pensava vir a ser o seu próximo projecto, Non, ou a Vã Glória de Mandar, que só seria realizado em 1990). Nós, no entanto, sabemos que Oliveira viverá até aos 106 anos e ainda tem pela frente tanto a consagração internacional como alguns dos melhores filmes da sua obra. Dir-se-ia, aliás, que o próprio epílogo do filme, na medida em que se transfere da casa para um estúdio de cinema, como se este fosse afinal a verdadeira casa de Oliveira, sabe mais do que o próprio realizador, antecipando o que virá a seguir. Por isso, de certo modo, Visita ou Memórias e Confissões é um filme não só sobre uma vida mas também sobre um destino.