26 de fevereiro de 2017

Toni Erdmann


Toni Erdmann (2016) é a terceira longa-metragem da realizadora alemã Maren Ade e sucede ao muito interessante Todos os Outros (2009). A acção do filme gira em torno da relação entre Winfried, um professor de música, e a sua filha Ines, consultora em Bucareste. Winfried, que gosta de partidas e disfarces, decide surpreender a filha com uma visita (para desespero desta) e começa a intrometer-se nos seus encontros de negócios, envergando dentes falsos e uma peruca ridícula e apresentando-se como “Toni Erdmann”, especialista em coaching. Grande parte do interesse do filme reside no facto de Winfried/Toni ser aceite como parceiro e interlocutor credível pelas pessoas que gravitam em torno da filha, apesar das suas tropelias e aparência grotesca, que pareceriam dever conduzir à sua alienação do universo extremamente formatado e pragmático que invade. De corpo estranho, Toni transforma-se quase em peça da engrenagem, chegando a provocar, inadvertidamente, o despedimento de um operário; o universo corporativo mostra-se sinistramente capaz de integrar a heterodoxia e de a desviar para os seus fins. Em paralelo, a relação entre a filha e o pai parece evoluir positivamente quando este assume o seu alter ego, embora neste capítulo Ade tenha o cuidado de injectar uma saudável dose de ambiguidade nas cenas finais. Sem ser uma obra-prima, Toni Erdmann é um filme inteligente e original, suscitando boas expectativas sobre a carreira futura de Ade – que também é produtora, incluindo dos filmes mais recentes de Miguel Gomes. Como explicar o extraordinário sucesso de bilheteira e de crítica, incluindo nomeação para um Óscar e o primeiro lugar nas listas de melhor do ano de revistas como Sight & Sound e Cahiers du Cinéma? Talvez porque funciona bem a vários níveis e está repleto de momentos de comic relief, talvez por ter sido confundido com uma comédia ligeira com uma mensagem positiva antiglobalização e pró-valores familiares. Quanto ao eventual remake norte-americano, de que já se fala por aí, há que esperar o pior.


19 de fevereiro de 2017

Elementos Secretos


Interessado nos temas da conquista do espaço e da matemática, o Cinéfilo Preguiçoso viu Elementos Secretos, de Theodore Melfi (2016), um filme baseado no livro Hidden Figures: The Untold Story of the African American Women Who Helped Win the Space Race, de Margot Lee Shetterly. Retratando o trabalho em torno da preparação do voo espacial de John Glenn, o primeiro americano a orbitar a Terra, Elementos Secretos tem como protagonistas Katherine Johnson, Dorothy Vaughan e Mary Jackson (Taraji P. Henson, Octavia Spencer – nomeada para o Óscar de melhor actriz secundária graças a este papel – e Janelle Monáe), mulheres negras que, num tempo em que a cor da pele podia ser considerada uma marca de inferioridade, conseguiram alguma realização profissional na NASA graças ao conhecimento de matemática, à garra e ao talento. O mais interessante deste filme relaciona-se com a reconstituição do contexto histórico tanto do programa espacial dos EUA, em competição com a URSS durante a Guerra Fria, como da segregação racial ainda vigente em alguns estados norte-americanos em 1962 (incluindo o estado da Virgínia, onde se situa o centro de investigação da NASA em questão) e das dificuldades acrescidas que esta situação impunha (por exemplo, zonas especificamente para negros em espaços públicos como autocarros, bibliotecas, casas de banho, etc.). Principalmente na segunda metade, destaca-se também o esforço de representar as dimensões concretas do trabalho das protagonistas e dos seus colegas: os cálculos, as dificuldades, a engenharia das máquinas, a adaptação aos primeiros computadores. No fim, a apresentação de fotografias da época que serviram de apoio à reconstituição histórica é cativante, chegando a ser comovente quando nos mostra os verdadeiros rostos das mulheres que inspiraram o filme. Tendo em conta a riqueza do material de base, Elementos Secretos poderia ser realmente interessante se não insistisse de modo quase exasperante em certos lugares-comuns de filmes sobre mulheres – festas, piqueniques, casamentos, convivência –, como se não fosse possível caracterizar personagens femininas sem estas referências, mesmo num filme que denuncia atitudes discriminatórias contra as mulheres. Tal como é, não pode ser considerado propriamente uma perda de tempo, mas fica muito abaixo das expectativas.

12 de fevereiro de 2017

Uma Discussão com 50 Anos


O documentário Uma Discussão com 50 Anos (The 50 Year Argument, 2014), co-realizado por Martin Scorsese e David Tedeschi, segue um figurino muito semelhante ao de outros que o Cinéfilo Preguiçoso abordou anteriormente, como Trespassing Bergman ou Vida Activa: O Espírito de Hannah Arendt: uma sucessão de depoimentos intercalados com imagens de arquivo. Será que este formato reúne aceitação consensual entre a comunidade documentarista como o modo mais eficaz de discutir ou homenagear uma personalidade ou instituição? O pretexto deste filme é a festa do 50.º aniversário da revista New York Review of Books, fundada em 1963. O tom combina bem com a ocasião: a grande maioria das intervenções assumem um tom francamente laudatório do espírito da revista, da sua tradição de independência intelectual e intervenção em questões sociais (da guerra do Vietname ao movimento “Occupy Wall Street”) e, em particular, da personalidade de Robert Silvers, que a edita desde a fundação (em colaboração com Barbara Epstein, até à morte desta, em 2006). A conduta predominante de Silvers enquanto editor assenta numa ideia simples: convidar autores inteligentes e cultos a escreverem sobre determinado livro ou assunto (não necessariamente dentro da sua especialidade), sem intervir demasiado a não ser para sugerir leituras de pontos de vista diferentes a debater. Analogamente, um documentário onde se vêem e ouvem pessoas do calibre intelectual de Isaiah Berlin, Susan Sontag, Mary Beard, Joan Didion, Mary McCarthy ou Timothy Garton Ash não pode deixar de ser cativante, mau grado o formato algo convencional. É talvez de lamentar que Scorsese e Tedeschi, apesar de um título que salienta a importância da discussão de perspectivas divergentes na New York Review of Books, não tenham apresentado pontos de vista menos abonatórios em relação a esta. O documentário funciona como um prolongamento em forma de filme da festa das bodas de ouro desta revista que continua a insistir na urgência de pensar e debater, numa era em que a superficialidade e a intoxicação mediática ganham terreno a um ritmo assustador. (Nota final: no final desta sessão, o Cinéfilo Preguiçoso teve a grata surpresa de se cruzar com uma multidão que enfrentou a chuva para assistir à projecção de Vida Activa: o Espírito de Hannah Arendt, no cinema Ideal.)


5 de fevereiro de 2017

Wiener-Dog


O filme Wiener-Dog (Todd Solondz, 2016), visto pelo Cinéfilo Preguiçoso em DVD, difere muito pouco de outras obras do realizador que estrearam em Portugal, como Felicidade (1998) ou Conta-me Histórias (2001). Tal como estes dois filmes, assenta em narrativas autónomas que se vão sucedendo, com personagens diferentes. Em Wiener-Dog o ponto comum das diferentes histórias é um cão da raça dachshund ou teckel, conhecido também como cão-salsicha, que vai transitando de dono para dono e de desastre em desastre. (Saliente-se, de passagem, que não é um filme aconselhável para amantes de cães.) Das quatro histórias, a única que revela verdadeiro investimento narrativo e um mínimo de compaixão e empatia pelas personagens é protagonizada pelo excelente Danny DeVito, no papel de um guionista falhado que trabalha como professor de guionismo. Todas as outras se limitam a mostrar pequenos incidentes e diálogos desinspirados retirados de vidas banais. Nem sequer Greta Gerwig, que o Cinéfilo Preguiçoso há muito admira, consegue salvar a história insípida onde intervém. Tal como Felicidade e Conta-me Histórias, Wiener-Dog é um filme sobre personagens inadaptadas, cruéis, estúpidas, passivas ou criminosas e partilha os mesmos problemas destes dois filmes: a falta de complexidade e o carácter unidimensional. Como nada nem ninguém escapa à mediocridade e à falta de significado na obra de Todd Solondz, a dada altura o espectador começa a interrogar-se sobre a pertinência não só do filme mas também das horas que desperdiçou a vê-lo quando podia estar a fazer coisas mais proveitosas. Filmes sobre personagens com vidas desinteressantes podem ser interessantes? Não se o realizador estiver sempre sempre a bater nessa tecla, por incapacidade de fazer coisas mais subtis.