30 de janeiro de 2022

Memória

É sempre interessante ver o que acontece quando um realizador sai do meio onde se habituou a fazer os seus filmes e parte para outro país, com tudo o que isso implica de adaptação a uma nova cultura e novos métodos de trabalho. A história do cinema está repleta de casos destes, com uma gama muito diversificada de resultados: há cineastas que sofrem uma assimilação radical e perdem a originalidade, outros que mudam de rumo criativo, mas continuam a realizar filmes dignos de nota, e ainda outros que se mantêm fiéis ao seu estilo no novo ambiente. A julgar por Memória (2021), recém-estreado em salas portuguesas, Apichatpong Weerasethakul pertence ao terceiro grupo. Este filme, o primeiro do realizador rodado fora da Tailândia, dá continuidade às suas preocupações e estética, apesar dos cenários colombianos e de ser falado em espanhol e inglês. Toda a obra de Weerasethakul é percorrida pela exploração do intangível, daquilo que foge à temporalidade e à vida terrena. Essa indagação assume formas e usa ferramentas narrativas mais ou menos familiares, como a metamorfose, a reencarnação, as manifestações espirituais e religiosas ou até o apelo à memória cinéfila do espectador (recorde-se o primata de olhos brilhantes de O Tio Boonmee…, de 2010, que poderia ter saído de um filme de terror barato, como acontece com a nave espacial de Memória). Os enredos deste realizador não cultivam a coerência, e a tentação, por parte do espectador, de procurar explicações metafóricas ou simbólicas é sistematicamente frustrada: as imagens de Weerasethakul esquivam-se a interpretações e convidam à contemplação e a uma viagem íntima, conceptual ou emocional. Memória estrutura-se em quadros sucessivos, com uma organização cronológica pouco linear, que nos mostram uma floricultora (Tilda Swinton), que, de visita a Bogotá para visitar a irmã doente, começa a ser atormentada por um som, semelhante a uma explosão, que ouve repetidas vezes na sua cabeça. A tentativa de descobrir a origem desse som leva-a num percurso que a afasta da vida citadina e das relações familiares, transportando-a para um ambiente selvagem e progressivamente alheado das peripécias quotidianas. No final desse percurso está um homem misterioso (que pode ser uma versão mais idosa do jovem sonoplasta de quem se aproximou) e uma reconexão com recordações do passado. Serão recordações pessoais, de outrem, ou colectivas? O cineasta nunca fornece respostas, e também nisto é fiel ao seu estilo de sempre: alusivo, oblíquo e preferindo a sugestão à tese. O Cinéfilo Preguiçoso costuma gostar de realizadores, como Kiarostami ou Rohmer, acusados de fazerem «sempre o mesmo filme», mas há uma fronteira ténue entre a repetição como fruto da coerência artística, nunca isenta de variações e evolução, e a repetição derivada da acomodação. Memória, na medida em que pouco acrescenta ao trabalho prévio do realizador, deixa razões para recear que Weerasethakul esteja a enveredar por esta segunda via, apesar de ser mais interessante do que a grande maioria dos filmes que têm estreado nos últimos tempos.
 
Outro filme de Apichatpong Weerasethakul no Cinéfilo Preguiçoso: Cemitério do Esplendor (2015).

23 de janeiro de 2022

Tucker – Um Homem e o Seu Sonho

É sempre um prazer encontrarmos por acaso um filme que ainda não tínhamos visto de um realizador de quem gostamos. Foi o que aconteceu ao Cinéfilo Preguiçoso esta semana quando, fazendo zapping, percebeu que um dos canais passava o filme Tucker – Um Homem e o Seu Sonho (Francis Ford Coppola, 1988). Coppola fez os seus melhores filmes na década de 1970, período em que trabalhou com toda a liberdade criativa. Na década seguinte, carregado de dívidas depois da falência do estúdio Zoetrope, viu-se obrigado a trabalhar com mais preocupações financeiras e comerciais. É evidente que é possível traçar alguns paralelos entre a vida de Coppola e a de Preston Tucker, um empreendedor que criou e promoveu com sucesso um modelo de carro com o seu nome, de que só conseguiu construir cinquenta veículos e por isso foi acusado de fraude pelos investidores, mas, curiosamente, o realizador começou a interessar-se por esta figura muito antes de saber que também ele teria de lidar com a desproporção entre as ideias de partida e os resultados finais. O grandioso projecto inicial de Tucker previa um filme musical experimental em que a história do protagonista (que seria interpretado por Marlon Brando) se entrelaçaria com as de Thomas Edison, Henry Ford, Harvey Samuel Firestone e Andrew Carnegie, como personagens secundárias. Embora não tenham deixado Coppola realizar mais um musical (depois do fracasso de bilheteira estrondoso que foi One From the Heart, de 1982) nem contar uma história com tantas dimensões, Tucker, explorando a ideia do sonho americano, preserva não só o tom eufórico e optimista desse género cinematográfico, mas também alguma coisa da abordagem grandiosa previamente idealizada. Por esse motivo, há uma dissonância interessante entre, por um lado, o tom e a ambição da realização, e, por outro, a história de fracasso quase completo de um protagonista sonhador que, a dada altura, fica praticamente só contra o mundo e, como um herói de Frank Capra, tem de lutar contra tudo e contra todos, mas sobretudo contra um establishment cínico que castiga o idealismo. Graças à influência mais sombria de Orson Welles, esta dissonância é reforçada por um nível de complexidade adicional que mantém sempre a pairar a suspeita de o protagonista ser parcialmente um charlatão com talento para manipular a sua própria imagem – quem também viu The Master (2012) pode dar por si a recordar este filme de Paul Thomas Anderson de vez em quando. Tendo Vittorio Storaro como director de fotografia e um excelente elenco em que se destacam Jeff Bridges e Martin Landau, Tucker é um filme esteticamente apelativo e excêntrico. Ainda que possa ser considerado menor dentro da obra de Coppola, merece atenção tanto pelos seus méritos como pela maneira como ilustra o processo de reinvenção criativa de Coppola na ressaca do período em que beneficiou tanto de meios para realizar os seus projectos grandiosos como de aclamação crítica quase universal.

Ler também: The Outsiders (Francis Ford Coppola, 1983).

16 de janeiro de 2022

Três Andares

Na primeira fase da sua carreira, Nanni Moretti fez filmes marcados pela exploração inteligente do registo de comédia ao serviço da sátira e da crítica sociológica e política. Esse registo, assim como o recurso à personagem de Michele Apicella, interpretada pelo próprio Moretti, foram abandonados depois de Abril (1998): os filmes que se seguiram, embora não estejam isentos de efeitos cómicos (particularmente Habemus Papam, de 2011), adoptam um tom grave que está nos antípodas, por exemplo, dos primeiros dois segmentos do genial Querido Diário (1993). Três Andares (2021), que passou recentemente pelas salas portuguesas e o Cinéfilo Preguiçoso viu esta semana no videoclube de uma operadora de telecomunicações, confirma esta tendência e pode ser aproximado a O Quarto do Filho (2001) e Minha Mãe (2015): em todos eles, os temas principais são as relações familiares e a maneira como estas são postas à prova pela perda ou pelo afastamento de um membro do círculo familiar, como efeito da morte, doença ou discórdia. Três Andares, que se baseia no romance do israelita Eshkol Nevo (é a primeira vez que Moretti filma um argumento adaptado de uma obra literária, se exceptuarmos Come Parli Frate?, de 1974, que parodia uma obra de Manzoni), descreve episódios vividos por três famílias que moram no mesmo prédio em Roma. Nos três enredos paralelos, as personagens fazem, de forma mais ou menos explícita, escolhas que condicionam e perturbam a coesão do núcleo familiar. Essas escolhas e acções (infidelidade conjugal, ruptura com um filho rebelde) são comuns a milhares de enredos de outros tantos filmes, séries e telenovelas, e, por mais que se faça um esforço nesse sentido, é difícil vislumbrar alguma originalidade ou cunho pessoal na maneira como estas histórias são contadas. Talvez por ser o mais ambíguo, o enredo protagonizado por Alba Rohrwacher, que envolve uma mãe assoberbada pela responsabilidade de cuidar da filha, pelas ausências do marido e por visões de um grande corvo negro, é o mais interessante. Três Andares não é um mau filme, e os seus méritos são evidentes: muito bom elenco, coesão narrativa, caracterizações psicológicas cuidadas. Contudo, não consegue dissipar a impressão de que tudo, da escolha do assunto ao registo solene, resulta de uma tentativa muito consciente de produzir um filme profundo, denso e consensual, onde não há lugar para a frivolidade nem para a ousadia formal. Não deixa de ser irónico constatar que, nos filmes em que Moretti/Apicella devorava um boião gigantesco de Nutella (Bianca, 1984), se atirava a uma piscina (Palombella Rossa, 1989) ou tecia considerações delirantes sobre política e urbanismo conduzindo a sua Vespa (Querido Diário), entre outras tropelias que eram frívolas só na aparência, conseguia ser tão ou mais profundo e incisivo do que quando se tenta inserir na tradição do melodrama familiar e se constrange a usar as ferramentas e o vocabulário que a caracterizam.
 
Outros filmes de Nanni Moretti no Cinéfilo Preguiçoso: Santiago, Itália (2018), Minha Mãe (2015).

9 de janeiro de 2022

O Amor É Uma Coisa Estranha | Homenzinhos

O Cinéfilo Preguiçoso planeava ir várias vezes ao cinema nos últimos dias do ano, mas a obrigatoriedade de apresentar um teste negativo à COVID-19 nas salas atirou-o para o limbo cinematográfico dos DVD e do arquivo e videoclube da televisão. Não foi totalmente desagradável. Entre títulos tão diferentes como O Movimento das Coisas (Manuela Serra, 1985), Carrie  (Brian De Palma, 1976), Blade Runner (Ridley Scott, 1982), Mystery Train (Jim Jarmusch, 1989) e O Último Retrato (Stanley Tucci, 2017, sobre Giacometti), destacaram-se dois filmes surpreendentemente bons do norte-americano Ira Sachs (n. 1965). Do mesmo realizador, o Cinéfilo Preguiçoso já tinha visto Frankie (2019), filmado em Sintra, com Isabelle Huppert, mas não tinha ficado com uma impressão muito favorável. Pelo contrário, O Amor É Uma Coisa Estranha (2014) e Homenzinhos (2016) são dois filmes notáveis. Formam uma espécie de díptico nova-iorquino que nos permite acompanhar as aventuras e desventuras de diferentes famílias através, por um lado, do espaço maior da cidade e, por outro, dos espaços mais restritos das casas onde habitam. A crise do imobiliário, a noção de lar e a forma como cada personagem ocupa um espaço são fulcrais em ambos. Em O Amor É Uma Coisa Estranha, os dois protagonistas (interpretados por John Lithgow e Alfred Molina) vêem-se obrigados a vender a casa em que moram há muitos anos, tendo de ser acolhidos por familiares, por não conseguirem encontrar outro apartamento a um preço aceitável na cidade. Em Homenzinhos, as famílias dos dois protagonistas adolescentes entram em conflito por causa da renda de uma loja que pertence a uma delas. A partir destes espaços e relações, Ira Sachs explora as dinâmicas familiares e sociais das personagens com uma subtileza e uma ausência de dramatismos e moralismos extraordinárias. Nos dois filmes, acompanhamos personagens geralmente com interesses artísticos, em fases muito diferentes da vida, mas tentando sempre perceber quem são, como querem ser ou como podem viver. A sobreposição temporária de perspectivas etárias e sociais muito diferentes permite ao realizador traçar um verdadeiro retrato da cidade e de alguns dos seus habitantes sem qualquer veleidade de transmissão de mensagem moral: vemos simplesmente pessoas como nós, tentando viver sem prejudicar ninguém, mas sem conseguirem escapar a uma ou outra dúvida ou decisão egoísta e às fricções e conflitos de interesses que resultam da convivência próxima. Não são filmes que imponham uma ideia inovadora ou que se distingam pela ousadia formal, mas, parecendo enganadoramente simples, deixam os espectadores com a sensação de que assistiram à própria vida e compreenderam como é estar vivo – uma das coisas mais complicadas que o cinema consegue fazer.