23 de fevereiro de 2020

Vita e Virginia


Visto no videoclube de uma operadora de telecomunicações, Vita e Virginia (Chanya Button, 2018) é um objecto híbrido, no mau sentido. Logo à partida, este filme, segunda longa-metragem de uma jovem realizadora cujo percurso inicial esteve ligado a alguns reputados teatros londrinos, enfrenta uma dificuldade importante: adapta uma peça, de Eileen Atkins (1992), sobre a relação entre Virginia Woolf e Vita Sackville-West. A relação entre o cinema e o teatro é complicada, sendo um dos seus riscos a artificialidade que pode resultar de traduzir em imagens em movimento um texto concebido para o palco, sobretudo se, como neste caso, a própria peça já se apropriava de excertos de livros e cartas entre as protagonistas. Sem dúvida, trata-se de um risco interessante, que pode ser superado de vários modos e tem-no sido algumas vezes na história do cinema; nem sempre a artificialidade funciona mal, mas falta a este filme precisamente aquilo que poderia ajudar a ultrapassar estas dificuldades: cinema – um pensamento capaz de usar as palavras e os actores para criar um objecto que não encontraríamos noutro lugar, nem no palco, nem na televisão. Vita e Virginia, infelizmente, lembra muitas vezes uma minissérie. É verdade que há séries de excelente qualidade e que plataformas como a Netflix tendem a esbater a distinção entre televisão e cinema, sobretudo quando dificultam a passagem dos seus filmes em sala, mas é precisamente por isso que sentimos falta de obras feitas para o cinema, capazes de transcenderem de algum modo os escassos centímetros dos ecrãs que temos em casa. Para quem, como o Cinéfilo Preguiçoso, gosta de filmes sobre escritores ou se interessa por Virginia Woolf, o círculo de Bloomsbury e a primeira metade do século XX em Inglaterra, Vita e Virginia, apesar de não ser um bom filme, não será uma total perda de tempo, na medida em que explora alguma informação relevante sobre a criação do romance Orlando e a falta de validade de todas as fronteiras de género e convenções de relacionamento para aquela geração. Estão em questão personagens riquíssimas não só do ponto de vista literário e biográfico, mas também na sua capacidade de inspirarem diferentes apropriações imaginativas. Logo no início, é inevitável compararmos a Virginia Woolf de Elizabeth Debicki com a de Nicole Kidman em As Horas, saindo a primeira a perder, mas ao longo do filme é preciso reconhecer que Debicki, mesmo sem qualquer caracterização que a aproxime fisicamente da escritora, capta com alguma competência o brilhantismo sempre no limiar da loucura de Virginia Woolf. Outra surpresa agradável é encontrarmos Isabella Rossellini no papel de mãe de Vita Sackville-West. As restantes interpretações, em particular a de Gemma Arterton no papel de Vita, são francamente insípidas, como se os próprios actores se sentissem desconfortáveis com os diálogos. Vita e Virginia, com uma banda sonora composta por Isobel Waller-Bridge (irmã da criadora de Fleabag), não é bem cinema, não é bem televisão, não é bem teatro, não é bem literatura; é um objecto sintomático dos tempos que vivemos, em que já não sabemos bem o que é o cinema nem se vai sobreviver.

16 de fevereiro de 2020

Maldone


O Cinéfilo Preguiçoso não podia faltar à retrospectiva que a Cinemateca está a dedicar a Jean Grémillon. Maldone (1928), primeira longa-metragem deste realizador francês, tem como personagem principal o filho primogénito de uma família rica que abdicou da herança paterna e leva uma vida despreocupada como barqueiro, entre a rotina do trabalho, os momentos de ócio e os amores. A morte do irmão mais novo compele-o a regressar a casa, assumir a herança, casar-se e passar a ter uma existência burguesa. Maldone pode ser comparado com filmes aproximadamente contemporâneos, marcados pela dualidade entre dois modos de vida: por exemplo, Sunrise (1927) e City Girl (1930), de Murnau. Um dos aspectos mais notáveis do filme é a diversidade de estilos que Grémillon cultiva, sem nunca perder coerência: à fluidez e ao dinamismo das cenas na primeira parte do filme (com destaque para a extraordinária sequência do baile em que, em poucos minutos, Maldone passa de espectador a instrumentista, e deste a amante ciumento e quezilento) sucedem-se os enquadramentos clássicos e os planos estáticos que nos mostram o interior burguês onde o protagonista se aborrece mortalmente. O final é outro exemplo disto: depois de escolher em definitivo o regresso à vida livre de outrora, Maldone como que se funde na natureza, num galope desenfreado e paroxístico que a câmara acompanha por meio de movimentos frenéticos. Apesar da sua juventude e falta de experiência, Grémillon mostra neste filme uma segurança, ousadia e modernidade que contribuem para explicar a reputação que depois adquiriu e que perdura até hoje, em contraste com o moderado sucesso de que gozou em vida: Maldone, distribuído numa versão mutilada, foi um fracasso de bilheteira. Duas curiosidades sobre o elenco: Charles Dullin, que desempenha o papel de protagonista, foi um gigante do teatro francês do século XX e companheiro de percurso de Louis Jouvet e Georges Pitoëff, entre outros; Génica Athanasiou, que dá corpo à dançarina cigana que rejeita o Maldone casado e burguês depois de ter aceitado os seus avanços enquanto operário, foi na vida real a companheira de Grémillon e, antes deste, de Antonin Artaud. Filipe Raposo acompanhou ao piano a projecção de Maldone e também a de Chartres (1923), uma curta-metragem do mesmo realizador que é notável pela maneira inteligente e arrojada como nos mostra a coexistência da imensa catedral com a trama urbana da cidade que a rodeia.

Sobre Remorques (Jean Grémillon, 1941).

9 de fevereiro de 2020

Mulherzinhas


Visto no cinema, Mulherzinhas (Greta Gerwig, 2019) é uma adaptação inteligente do livro com o mesmo título de Louisa May Alcott (1832-1888), conterrânea e contemporânea de Thoreau e Emerson. Em relação a outras adaptações do mesmo livro, o filme de Gerwig distingue-se por prestar mais atenção não só à actividade literária da vida da protagonista Jo/Saoirse Ronan, mas também à própria atmosfera cultural da época. Sabe-se, por exemplo, que Gerwig distribuiu entre os actores exemplares de Leaves of Grass, de Walt Whitman, para que lessem este livro durante as filmagens. A garra, a seriedade e a autenticidade com que as irmãs March encaram a vida têm como referências não só os já mencionados Thoreau, Emerson e Whitman, mas também as irmãs Brontë, identificadas explicitamente no filme como mulheres que singraram enquanto artistas, uma excepção naquela época. A atenção à vertente literária organiza a própria estrutura do filme, que começa num tempo em que Jo procura afirmar-se e sobreviver como escritora, revisitando depois em flashbacks o passado que a forma como tal, para terminar com a publicação do seu primeiro livro. Outro elemento interessante do filme de Gerwig é a complexidade das personagens femininas, que, ao contrário do que se verifica noutras adaptações, não são sempre boazinhas e lineares, antes demonstrando hesitações em relação ao empenho moral da família e chegando a cometer actos duvidosos e repreensíveis. No aspecto da ambiguidade moral, destaque para a excelente Amy/Florence Pugh, que não só queima um manuscrito de Jo como casa com o antigo pretendente desta e a substitui numa viagem à Europa na companhia da tia abastada. Além disso, as personagens femininas de Mulherzinhas nunca orbitam em torno das personagens masculinas. Ainda assim, nos seus momentos menos interessantes e mais convencionais, o filme interessa-se pela vertente telenovelesca e pseudo-idílica da vida das protagonistas, parecendo esquecer um pouco o rumo mais crítico em relação às desigualdades que as mulheres enfrentavam naquela época, algumas das quais ainda hoje estão por resolver. Nos tempos que correm, nem todas as personagens femininas têm de casar ou morrer no fim do livro ou do filme, mas continuam a ter muitas justificações a apresentar e dificuldades a superar sempre que assumem papéis menos convencionais. Quanto a Greta Gerwig, vai-se destacando aos poucos como figura culta, sem medo de explorar os seus próprios interesses e particularidades enquanto actriz, argumentista e realizadora. Ficamos com muito interesse em ver o que conseguirá fazer daqui a alguns anos, depois de se libertar de algumas preocupações com o gosto mais mainstream, se a deixarem.

Sobre o filme Lady Bird (Greta Gerwig, 2017).

2 de fevereiro de 2020

Os Filhos de Isadora


O Cinéfilo Preguiçoso ficou vivamente impressionado com Un Jeune Poète (2014), primeira longa-metragem de Damien Manivel. Foi, por isso, com expectativas elevadas que se dirigiu ao Nimas para ver o filme mais recente deste realizador francês, bailarino de formação. É precisamente em torno da dança que Os Filhos de Isadora (2019) se articula. O fio condutor, ao longo de três segmentos, é a coreografia que Isadora Duncan concebeu como homenagem aos seus dois filhos, depois da morte de ambos num acidente de automóvel em 1913. No primeiro segmento, uma bailarina tenta reconstituir essa coreografia, num trabalho minucioso que implica investigação, decifração da complexa notação usada por Duncan e o treino dos movimentos de dança propriamente ditos. A maneira como Manivel mostra estas actividades solitárias, meticulosas e disciplinadas, entre idas à biblioteca e pequenas cenas da vida pessoal, faz lembrar, por contraste, as deambulações aleatórias e vagamente cómicas do protagonista de Un Jeune Poète, em busca de inspiração pelas ruas de uma cidadezita mediterrânica. No segundo segmento, assistimos aos ensaios de um espectáculo baseado na mesma coreografia, interpretada por uma jovem bailarina portadora de trissomia 21. O registo é quase documental: predomina a exploração da relação entre a bailarina e a coreógrafa que a acompanha, incluindo momentos de pausa e lazer, aparentemente banais mas que ajudam a realçar a dedicação e o empenho que presidem ao esforço comum. Também aqui, a procura do gesto e da postura mais fiéis à coreografia de Duncan é uma constante, mas já estamos sob uma perspectiva mais pragmática, inerente ao objectivo de transformar essa mesma coreografia num espectáculo para um público. No terceiro segmento, enquanto se ouve o tema de Scriabin que acompanha o bailado, são-nos mostrados os rostos comovidos dos espectadores que assistem ao espectáculo preparado no segmento anterior – fazendo lembrar Shirin (2008), de Kiarostami. O segmento concentra-se numa das espectadoras: a personagem, interpretada por Elsa Wolliaston (coreógrafa, divulgadora e bailarina com um longo historial de colaborações nos domínios da música e do cinema), sai da sala de concertos, janta num restaurante, apanha um autocarro para casa, prepara-se para se deitar. Nesta sequência longa e magnífica, quase isenta de palavras, a marcha penosa da personagem, ajudada por uma muleta, é-nos mostrada de forma exaustiva, com o mesmo respeito pelo esforço corporal que foi dedicado aos movimentos graciosos das bailarinas dos segmentos anteriores. Talvez fosse desnecessária a parte final, em que esta personagem ensaia discretamente alguns dos passos de dança a que acabou de assistir: os simples gestos quotidianos, filmados com uma economia de meios impressionante, bastariam para transmitir de forma eficaz o efeito, na personagem, da coreografia a que assistira. Os Filhos de Isadora é um filme sobre o poder da arte para tocar as vidas alheias de formas diversas e imprevisíveis. Tem o mérito de transmitir o esforço técnico e investigativo inerente à prática da dança sem obliterar a componente de expressão pessoal que era tão cara a Duncan. Não sendo tão original e desconcertante como Un Jeune Poète, é um filme que confirma Manivel como um nome a seguir. Seria bom que alguma sala de cinema exibisse as restantes longas e curtas metragens deste realizador.