31 de julho de 2022

Crepúsculo

O tempo estival encoraja o Cinéfilo Preguiçoso a escolher os filmes que vê de forma mais livre e contando com a ajuda do acaso. Foi nesse espírito que entrou numa sala para ver Crepúsculo (2021), sétima longa-metragem do mexicano Michel Franco, apesar de nada saber sobre o realizador e pouco ter lido sobre o filme. O enredo centra-se em Neil (Tim Roth), que está a passar umas férias em Acapulco com a irmã e os filhos desta. Quando se torna necessário regressar abruptamente a Inglaterra por causa de um falecimento na família, Neil finge ter perdido o passaporte e fica em terra. Nos dias seguintes, entrega-se ao ócio e à observação passiva do que o rodeia, claramente sem vontade de regressar à sua rotina normal, mas sem que pareça ter qualquer projecto de vida alternativo. O filme consegue suscitar o interesse do espectador graças à apatia da personagem principal. Não estamos habituados, no cinema, a ver pessoas que não fazem nada. Quando isso acontece, é inevitável vermos nisso um preâmbulo para um arranque da acção. (Pode comparar-se este filme com a sequência inicial de outro, completamente diferente: Conto de Verão, de Éric Rohmer, de 1996, onde Melvil Poupaud passa muito tempo entregue à inércia estival, como que à espera que o filme comece.) Seria de aguardar, com base em experiências cinéfilas anteriores (nem sempre de boa memória), que a impassibilidade de Neil escondesse um segredo terrível ou uma vida dupla, que, com mais ou menos reviravoltas no argumento, fossem revelados e funcionassem como motor da acção na parte final do filme, mas isso nunca acontece. Há uma revelação perto do fim, que fornece uma justificação para alguns dos comportamentos da personagem, mas não tem impacto na estrutura do filme. Michel Franco merece crédito por ser coerente até ao fim no propósito de fazer um filme sobre a apatia, com alguma intriga familiar pelo meio, que dá direito de cidade a uma personagem completamente isenta das motivações e dos impulsos que, por norma, fazem os enredos avançar, mas a impressão final, apesar da sobriedade do estilo, é de alguma vacuidade. Contrariar as expectativas do espectador não basta: convém oferecer-lhe algo em troca dessas expectativas goradas. Há, contudo, um aspecto adicional de Crepúsculo que merece ser salientado, e que tem a ver com a escolha do excelente Tim Roth. Estamos habituados a vê-lo em papéis completamente diferentes, mais enérgicos e marcados por uma certa volatilidade, como, por exemplo, em O Cozinheiro, o Ladrão, a sua Mulher e o Amante dela (1989), de Peter Greenaway, ou Pulp Fiction (1994), de Quentin Tarantino. A extrema contenção do seu papel em Crepúsculo intriga aqueles que o viram noutros registos e contribui para a ambiguidade e tensão do filme.
 
O Cinéfilo Preguiçoso regressará em Setembro. Boas férias para todos!

24 de julho de 2022

A Paixão de Swann

Em 2022, mais precisamente no dia 18 de Novembro, comemora-se o centenário da morte de Marcel Proust. O Cinéfilo Preguiçoso é um grande fã de Proust e tem pensado em ver filmes relacionados directa ou clandestinamente com este escritor. Esta semana viu A Paixão de Swann (1984) em DVD. Até Volker Schlöndorff realizar este filme, a história da relação de Proust com o cinema incluiu algumas tentativas falhadas de adaptação da Recherche, por cineastas como René Clément, François Truffaut, Luchino Visconti, Joseph Losey ou Peter Brook. Antes de A Paixão de Swann, Schlöndorff já tinha realizado várias adaptações de obras literárias (entre as quais, em 1966, O Jovem Törless, a partir de Musil, e, em 1979, O Tambor, a partir de Günter Grass), portanto não é um novato nesta área. A decisão que lhe permitiu concretizar aquilo com que outros tinham apenas sonhado foi de carácter prático: perante uma obra de vários volumes e com mais de duzentas personagens, trabalhando com os argumentistas Jean-Claude Carrière e Marie-Hélène Estienne a partir de uma ideia inicial de Peter Brook, concentrou-se em Charles Swann, um dos protagonistas dos dois primeiros volumes em particular na estranha relação deste esteta e coleccionador judeu com a cortesã Odette de Crécy. Mais do que isso, dentro da história de Swann e Odette, Schlöndorff optou por filmar um dia em que há um ponto de viragem na relação, a partir do qual faz vários flashbacks e um flashforward final, com que o filme termina, poucos meses antes da morte de Swann. A relação entre Swann (Jeremy Irons) e Odette (Ornella Muti) é uma escolha inteligente, por ser um dos elementos mais importantes da Recherche, funcionando ao longo do romance, por aproximações e afastamentos, como uma espécie de “auxiliar de leitura” não só das outras relações amorosas, mas também da atitude do próprio narrador relativamente à arte e à vida. Esta relação parece começar por iniciativa de Odette, que seduz Swann, até ao momento em que percebe que o conquistará totalmente negando-se a ele. No dia que acompanhamos neste filme, Swann, vencido pelo desejo e pelo ciúme, resigna-se a percorrer os restaurantes e as festas da cidade em busca de Odette, que, apesar de se cruzar com ele em vários momentos, continua a fugir-lhe. Esta é a noite em que Swann percebe que só terá descanso se, escandalizando a alta sociedade em que se move e deitando a perder o seu prestígio social, se casar com esta mulher que tantos tiveram por dinheiro e que “nem sequer faz o género dele”. O facto de no filme termos acesso principalmente às humilhações e aos actos irracionais, desesperados e às vezes violentos do protagonista priva-nos das reflexões e sugestões de Proust sobre os trâmites do desejo. Por esse motivo, é possível que quem veja só este filme, sem conhecer a Recherche, encontre nele apenas uma história de amor algo intrigante. Ainda assim, A Paixão de Swann é um filme visualmente interessante, graças ao trabalho de Sven Nykvist como director de fotografia e também por efectuar uma cuidada reconstituição histórica de Paris no século XIX. Além de Irons e Muti, o elenco inclui actores como Alain Delon, Fanny Ardant ou Marie-Christine Barrault, mas a quem não é dada grande oportunidade de desenvolverem personagens com profundidade. Em 1994, Raúl Ruiz realizou aquela que é conhecida como a segunda adaptação da Recherche, em O Tempo Reencontrado. O filme de Ruiz é considerado por muitos mais fiel ao espírito proustiano do que o de Schlöndorff, mas talvez seja menos conseguido do que A Paixão de Swann, que é mais coerente e equilibrado por não ter a ambição de reflectir a complexidade estrutural e temática da Recherche. E note-se que, por muito falhados que os filmes de Clément, Truffaut, Visconti, Losey ou Peter Brook tivessem sido, o Cinéfilo Preguiçoso teria, mesmo assim, gostado de os ver.

17 de julho de 2022

A Mamã e a Puta

É sintomático que, em plena era digital, numa altura em que estamos expostos a uma profusão pletórica de imagens, sons e textos à distância de um clique, a redescoberta de um filme esteja tão dependente dos esforços para recuperar aquela que, durante muito tempo, era a única cópia em circulação. Saúda-se, obviamente, a iniciativa de restaurar e disponibilizar a obra completa de Jean Eustache, um daqueles criadores mais ou menos marginais que a cultura francesa produz com abundância e que são quase sempre mais interessantes do que os que recebem a unção da grande imprensa e das entidades estatais. A Mamã e a Puta (1972), uma das duas longas-metragens que Eustache realizou na sua curta carreira, adquiriu uma reputação sólida apesar da sua escassa visibilidade. O filme mostra um triângulo amoroso composto por um jovem ocioso (Alexandre/Jean-Pierre Léaud), a sua companheira (Bernadette Lafont) e uma enfermeira (Françoise Lebrun) que ele conhece por acaso e com quem se envolve. Este triângulo reproduz fielmente aquele que o próprio Eustache viveu com Catherine Garnier, com quem rompeu a ligação por causa de uma enfermeira. Garnier, a quem o filme (onde trabalhou como figurinista) é dedicado, suicidou-se pouco depois da estreia. Acrescente-se que a própria Françoise Lebrun tinha partilhado a vida com Eustache antes disso. O espectador fica com a sensação de espreitar a vida íntima do realizador, e a sua reacção dependerá inevitavelmente da maneira como reage a este exercício de quase-autobiografia levado ao extremo. É inegável que A Mamã e a Puta tem méritos e aspectos muito interessantes. Mencione-se, em particular: o uso da música (sempre em som directo, geralmente proveniente do gira-discos ao lado da cama onde se passa uma grande parte da acção); o uso das palavras, uma logorreia que serve sucessivamente de instrumento de persuasão, desabafo ou simplesmente pretexto para preencher o tempo; o retrato de uma Paris (em particular o bairro de Saint-Germain-des-Prés) indiferente ao desencanto e tédio típicos daqueles que vivem em plena ressaca da euforia dos anos 60. O principal problema deste filme é soar demasiado a um exercício de cinismo e manipulação. Até se acredita que Eustache quisesse acima de tudo exorcizar os seus demónios e não justificar-se, mas A Mamã e a Puta torna o espectador refém de uma empreitada que parece consistir em tentar transformar os caprichos e as canalhices de Alexandre em arte, e, desse modo, esquivar-se aos julgamentos de valor que seriam inevitáveis no mundo real e que o próprio protagonista aplica aos que o rodeiam, entre citações literárias e cinematográficas para embelezar a situação. O cinema e a literatura estão repletos de personagens amorais e manipuladoras, mas que só se tornam interessantes quando deixam de ser meros repositórios de caprichos imaturos, o que não é o caso aqui: o desenlace, em que Alexandre aceita casar-se com a enfermeira, mostra aquilo que muito provavelmente não passará de mais um falso recomeço num ciclo eterno de ligações e rupturas. E não se trata, sublinhe-se, de julgar o realizador (o que não caberia no âmbito desta coluna) nem a sua persona cinematográfica. É um facto: julgamentos éticos sobre comportamentos de personagens são, quase sempre, exercícios fúteis. O problema é que A Mamã e a Puta é dominado pelas escolhas e conduta sinuosa de Alexandre, e é pouco aquilo que resta se abdicarmos de as julgar. O espectador sente-se como um amigo do protagonista que este tivesse encontrado numa esplanada e que fosse obrigado a escutá-lo. A arte declinada na primeira pessoa tem estes riscos: nem toda a gente é muito interessante, por isso pode ser conveniente que a obra não dependa tão absolutamente dos detalhes da vida e do esquema mental de um só indivíduo.

10 de julho de 2022

Os Contos de Hoffmann

Como vimos na semana passada, em Tetro (2009), Francis Ford Coppola inclui excertos de Os Contos de Hoffmann (1951) de Michael Powell e Emeric Pressburger. Deste filme, Coppola recupera uns momentos intrigantes em que o corpo de um autómato feminino se desintegra em partes que parecem reter ainda alguma vida – e que foram motivação suficiente para o Cinéfilo Preguiçoso procurar o DVD. Depois de ver a peça Os Contos Fantásticos de Hoffmann (1851), de Jules Barbier, inspirada em três contos de E. T. A. Hoffmann (1776-1822), Jacques Offenbach (1819-1880) compôs uma ópera fantástica com o mesmo título. Mais tarde, Thomas Beecham, que já tinha trabalhado com Powell e Pressburger em Os Sapatos Vermelhos (1948), sugeriu-lhes que fizessem um filme a partir da ópera, com libreto adaptado por Dennis Arundell. O filme segue de perto a estrutura original, dividindo-se em três partes, com um prólogo e uma conclusão. O protagonista é o próprio Hoffmann, que descreve a sua carreira de poeta através das mulheres por quem se apaixonou: em Paris, uma boneca mecânica; em Veneza, uma cortesã; numa ilha grega, uma cantora de ópera intensa e apaixonada, mas com pouco tempo de vida (sofre de tuberculose); em Nuremberga, cenário do prólogo e da conclusão, uma bailarina. Através desta descrição, é fácil perceber que são explorados em espaços emblemáticos alguns temas ou obsessões oitocentistas, como os autómatos, as marionetas, as personificações do mal, a tuberculose e a suposta volubilidade das mulheres. Desdobrado em quatro personagens, o feminino é encarado através de figuras que dão corpo a várias fantasias masculinas, ao mesmo tempo que de boa vontade se deixam manipular pelo Mal, encarnado sempre pelo mesmo actor (Robert Helpmann), em diferentes manifestações/personagens. Os realizadores poderiam ter optado por uma abordagem mais realista aos cenários, mas preferiram criar um mundo de fantasia completamente artificial e cheio de bizarria, que nos faz pensar que este filme pode ter sido uma grande influência para Eyes Wide Shut (1999), de Stanley Kubrick. Os Contos de Hoffmann já foi descrito como uma fantasmagoria que representa a vida interior do artista. Podemos dizer que forma um díptico com Os Sapatos Vermelhos, e não só por partilhar alguns elementos do elenco deste filme: enquanto, em Os Sapatos Vermelhos, a bailarina Vicky (Moira Shearer) tem de escolher entre a dedicação absoluta à dança e uma vida normal, em Os Contos de Hoffmann o protagonista vê-se obrigado a defender a sua sanidade e a integridade da sua alma num mundo de malevolência e sedução, acabando por perceber que a poesia tem de ser um acto de resistência e exige entrega total. Quase todos os actores e bailarinos são dobrados por cantores, o que permite total sinergia entre música, dança e cinema. O filme mantém um impacto visual avassalador, mas em que talvez a interpretação musical (em que assentam todos os diálogos) seja a faceta que mais envelheceu. Além de Francis Ford Coppola, realizadores como Martin Scorsese e George A. Romero manifestaram entusiasmo por Os Contos de Hoffmann, mas não se pode dizer que Powell e Pressburger tenham deixado muitos herdeiros, o que torna ainda mais singular a obra destes realizadores.

Ler também: Peeping Tom (Michael Powell, 1960).

3 de julho de 2022

Tetro

Pouco entusiasmado com o panorama das estreias em sala, esta semana o Cinéfilo Preguiçoso optou por ver um filme previamente gravado num canal de televisão: Tetro (2009), de Francis Ford Coppola. Uma das coisas que saltam à vista quando se consulta a ficha técnica do filme é o facto de o argumento ser da autoria exclusiva do próprio Coppola e não se basear em qualquer obra literária, o que é extremamente raro numa carreira repleta de adaptações e colaborações com outros argumentistas. O enredo, em torno do reencontro em Buenos Aires de dois irmãos, filhos de um maestro famoso e autoritário, é bastante simples e semelhante a outros já vistos em inúmeros filmes e séries. A figura do pai dominador e do filho que prefere a fuga ao confronto são clássicas, assim como a dinâmica entre o irmão mais velho (Tetro/Vincent Gallo), rebelde mas protector, e o irmão mais novo (Bennie/Alden Ehrenreich), dividido entre a tentação de seguir o exemplo e a necessidade de se afirmar. Em Tetro – e esta é talvez a parte mais interessante da história – Bennie encontra e completa os escritos do irmão mais velho, abandonados no fundo de uma mala e redigidos em código. A peça que tinha ficado por acabar, talvez porque a sua conclusão implicava a revelação de um segredo de família, serve a Bennie para se aproximar do irmão e, ao mesmo tempo, para se afirmar e se integrar na comunidade onde este vive e trabalha. Ao forçar esse desfecho, Bennie dá também a Tetro a oportunidade de desbloquear a sua vida: revelar o seu segredo, ajustar contas com o pai e, talvez, tornar-se finalmente o escritor que aspira a ser. Tetro não passaria de um filme menor e de interesse medíocre se este argumento fosse filmado por alguém sem o talento e a experiência de Coppola, que parece ter concebido o enredo como pretexto não só para explorar memórias e temas recorrentes (recordem-se as relações familiares complexas na saga O Padrinho, recorde-se a relação entre Mickey Rourke e Matt Dillon em Rumble Fish, de 1983), mas também para desenvolver ideias visuais e estruturas narrativas. Os flashbacks, assim como os excertos de peças e do filme Os Contos de Hoffmann (1951), de Michael Powell (que Coppola se recorda de ver com o seu irmão, conforme declarou numa entrevista), instalam uma dimensão onírica e nostálgica que quebra o ambiente realista das cenas domésticas e de rua. Mencione-se ainda, como exemplo das numerosas mudanças de registo do filme, a sequência do festival literário, presidido por uma crítica literária famosa (Carmen Maura), onde Tetro obtém a consagração. Não havia nada na lógica narrativa que obrigasse a que o festival se realizasse no meio da imensidão da Patagónia, mas isso permite criar um ambiente efémero de road movie que torna Tetro ainda mais inclassificável. Apesar dos elementos autobiográficos e dos ecos de outros filmes, não é fácil compreender o que terá levado Coppola a querer filmar esta história, entre tantas outras, nesta fase da sua carreira em que o tempo para realizar os seus projectos começa a escassear. Mas talvez não haja nada para compreender. As últimas obras deste enorme realizador, tão diferentes entre si, têm uma coisa em comum: a liberdade de escolha de um criador que já não tem nada a demonstrar e não tem de prestar contas a quem quer seja.
 
Outros filmes de Francis Ford Coppola no Cinéfilo Preguiçoso: The Outsiders (1983); Tucker Um Homem e o Seu Sonho (1988).