13 de dezembro de 2020

Giro Turistico senza Guida

O Cinéfilo Preguiçoso já conhecia o conto “Unguided Tour” de Susan Sontag (1933-2004), mas, até ler uma referência no livro Suppose a Sentence, de Brian Dillon, na secção em que se comenta uma frase do conto, nada sabia do filme Giro Turistico senza Guida (em inglês, Unguided Tour aka Letter from Venice), realizado pela própria autora em 1983 e disponível no YouTube. Considerado por muitos um dos melhores contos de Sontag, “Unguided Tour” é uma espécie de apanhado de comentários e diálogos trocados durante uma viagem por um casal em fim de relação, relatados a uma terceira pessoa, que às vezes intervém. É um texto fragmentário, que explora lugares-comuns turísticos, interrompidos de vez em quando por reflexões mais pessoais, sobre viagens, o passado, a memória e a melancolia. Enquanto no conto o cenário não é identificado com clareza, embora haja bastantes referências a elementos típicos de Itália, o filme situa as personagens em Veneza e usa apenas uma parte do texto de origem, acrescentando alguns comentários relacionados com esta cidade. Durante grande parte do filme, no entanto, a câmara de Sontag parece interessar-se pelos elementos menos turísticos de Veneza, explorando antes coisas quotidianas: pombos, sacos do lixo, grupos de turistas, rapazes a jogarem futebol numa praceta, obras na fachada de uma casa; também a luz veneziana está ausente – os dias estão sempre nublados. Só antes do fim temos imagens mais turísticas, numa secção dedicada aos leões de Veneza. Por este espaço, sem enredo e sem mapa, move-se o casal em crise, interpretado por Lucinda Childs (bailarina e coreógrafa com quem Sontag na altura tinha uma relação) e Claudio Cassinelli (actor italiano), ao som da água dos canais e das palavras da personagem feminina, de vez em quando interpelada por uma interlocutora. Brian Dillon diz que este filme lhe lembra as imagens de Suite Vénitienne de Sophie Calle, mas ao Cinéfilo Preguiçoso pareceu sobretudo uma versão desinspirada de India Song (1975), de Marguerite Duras (filme que, aliás, tem um duplo/sequela intitulado Son Nom de Venise dans Calcutta Désert, 1976). Como Duras, Sontag tenta explorar tanto a desconexão entre palavras, imagens e sons como uma certa artificialidade coreográfica, mas falta-lhe a intensidade emocional de Duras. Além disso, o facto de o filme fragmentar um texto de partida já de si fragmentário pode causar estranhamento ou distanciamento aos espectadores que não estejam familiarizados com o conto; em contraste, India Song baseia-se no notável Le Vice-Consul, um texto com uma coerência e uma espessura dramática que permitem aventuras formais na adaptação sem com isso alienar o espectador. Em si mesmo, Giro Turistico senza Guida não é um filme memorável, na medida em que pouco acrescenta ao espectador, mesmo que este tenha interesse em quase tudo o que se possa dizer e mostrar sobre Veneza. Ressalve-se, no entanto, que a experiência de ver o filme se torna mais estimulante se o articularmos com o conto de Sontag e tomarmos em consideração a personagem e a vida da sua autora e realizadora, que foi uma das figuras mais carismáticas e marcantes da cultura americana do século XX.

O Cinéfilo Preguiçoso regressará em 2021, se o mundo ainda existir. Boas festas para todos.

6 de dezembro de 2020

A Cidade Perdida de Z

O Cinéfilo Preguiçoso continua a recorrer à oferta dos canais de televisão para descobrir filmes que lhe escaparam aquando da estreia em sala. A Cidade Perdida de Z (2016), realizado por James Gray a partir de um livro de David Grann, baseia-se na vida de Percy Fawcett, um explorador inglês que fez várias expedições à Amazónia nas primeiras décadas do século XX e que acreditava na existência nessa zona de uma civilização avançada que teria deixado vestígios, talvez até uma cidade inteira. O que mais impressiona neste filme são a contenção e o equilíbrio formal. Os exemplos de Apocalypse Now (1979), Aguirre der Zorn Gottes (1972) ou Fitzcarraldo (1982) fariam recear que o tema da selva e da procura de uma cidade mítica convidasse a um registo de grandiloquência ou à exploração de traços psicóticos do protagonista. Nada mais longe da realidade: não só a abordagem de Gray não tem nada a ver com a de Coppola nem com a de Herzog, como Charlie Hunnam, no papel de Fawcett, está nos antípodas de Brando ou Kinski. A personagem principal é retratada como uma pessoa normal: um oficial do exército e pai de família, que aceita liderar a sua primeira expedição tanto para cumprir ordens superiores como para progredir na carreira, acabando por ficar obcecado com o objectivo de descobrir a cidade que baptizou de “Z” (porque, tal como esta é a última letra do alfabeto, essa descoberta seria “a última peça do puzzle”, indispensável para a compreensão da História da civilização na América do Sul). A Cidade Perdida de Z obedece a muitas convenções do género (incluindo a relação de Fawcett com o filho, inicialmente hostil, mas que acaba por seguir as pisadas do pai) e segue uma linha cronológica, com breves flashbacks. As cenas na Amazónia alternam com cenas em Inglaterra, incluindo debates com membros da Royal Geographic Society deveras cépticos, e com cenas nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, impondo um ritmo que pode ter a ver com a preocupação de preservar a economia narrativa, mas que ajuda a manter o filme centrado na personagem de Fawcett, cujo carisma discreto resiste ao tempo e às mudanças de cenário. Talvez o maior mérito de James Gray seja o de, graças às escolhas conservadoras ao nível da estética e do argumento do filme, conseguir equilibrar as várias facetas do filme. O resultado é uma obra coerente e muito rica do ponto de vista humano, que se vê com interesse sobretudo pelo facto de o realizador não ter explorado histrionismos nem explorações estereotipadas da natureza do mal ou da loucura.