30 de outubro de 2022

Hill of Freedom

Vêm aí a Festa do Cinema Francês e o LEFFEST, onde o Cinéfilo Preguiçoso planeia ver várias sessões. Esta semana, no entanto, optou por um filme em DVD – de um realizador prolífico e repetitivo, mas sempre apaixonante: Hong Sang-Soo. No início de Hill of Freedom (2014),  Kwon (Seo Younghwa) recebe um conjunto de cartas, mas, sem querer, deixa-as cair, as folhas espalham-se e ela não só as apanha na ordem errada como também perde uma delas. Por isso, à medida que esta personagem lê as cartas, os espectadores assistem às cenas que as palavras descrevem, mas as cenas não seguem a ordem cronológica dos acontecimentos. As cartas foram enviadas por Mori, interpretado pelo actor japonês Ryo Kase, nosso conhecido de filmes como Cartas de Iwo Jima (Clint Eastwood, 2006) ou Like Someone in Love (Abbas Kiarostami, 2012), um professor de línguas que regressa à Coreia, onde viveu anos antes, para, sem ter combinado nada com ela, tentar rever Kwon, por quem continua apaixonado. Em toda a sua obra, Hong Sang-Soo explora formas de desconforto; em Hill of Freedom, o desconforto também é linguístico: pelo facto de o protagonista ser um japonês que não fala coreano, as personagens comunicam principalmente em inglês, o que condiciona tudo o que contam sobre si próprias e o tom em que o fazem. Forçadas a usar um idioma que dominam mal, recorrem a expressões cruas e directas, que, em circunstâncias normais, seriam amortecidas por circunlóquios e fórmulas. Nas cartas, Mori descreve a Kwon todas as peripécias em que se envolve enquanto espera por ela. Os acontecimentos são típicos do cinema de Hong Sang-Soo – desencontros, traições, compromissos, discussões, mal-entendidos, conversas em que uma personagem tenta rebaixar outra, avanços precipitados e recuos necessários. Como acontece em A Mulher que Fugiu (Hong Sang-Soo, 2020), ficamos com a sensação de que a relação principal – entre o autor e a destinatária das cartas – é vista através da lente das relações destas diferentes personagens, mas nunca sabemos o que se passou entre eles antes do início do filme. A cronologia baralhada deixa os espectadores sempre atentos, para tentarem perceber o que aconteceu antes e depois. Durante todo o filme, Mori faz-se acompanhar de um livro intitulado O Tempo, em que, como ele próprio explica num momento hilariante, o autor defende que o passado, o presente e o futuro têm existência simultânea (será A Ordem do Tempo, de Carlo Rovelli?) e que a passagem do tempo é uma noção meramente psicológica, mas talvez o filme chame mais a atenção para questões de narração. Nunca se esclarecem totalmente os acontecimentos descritos na folha perdida: interrogamo-nos sobre o que poderá ter acontecido. A história tem um final feliz, mas assistimos a uma cena adicional depois de sabermos que os protagonistas ficaram juntos, o que instabiliza tudo. Tal como acontece em muitas outras obras de Hong, o artifício narrativo (neste caso, a ordem cronológica aleatória que reflecte a mistura das cartas) dá pistas para a interpretação, mas não esgota a riqueza do filme. Hill of Freedom dura pouco mais de uma hora, mas continuamos a pensar nele durante muito tempo depois.

Outros filmes de Hong Sang-Soo no Cinéfilo Preguiçoso: A Virgem Desnudada pelos Seus Pretendentes (2000); Conto de Cinema (2005); Mulher na Praia (2006); O Filme de Oki (2010); The Day He Arrives (2011); Haewon e os Homens (2013); Our Sunhi (2013); Right Now, Wrong Then (2015); On the Beach at Night Alone (2017); O Dia Seguinte (2017); Hotel à Beira-Rio (2018); A Mulher que Fugiu (2020); Apresentação (2021).

23 de outubro de 2022

Serpico

O Cinéfilo Preguiçoso continua empenhado em descobrir mais filmes realizados por Sidney Lumet. Nesta semana, viu na televisão Serpico (1973), baseado na vida do agente com o mesmo nome que se recusou a alinhar no esquema de subornos que minava a polícia nova-iorquina no final dos anos 60 e cujas denúncias levaram ao estabelecimento de uma comissão de inquérito independente e a uma tomada de consciência sobre o problema da corrupção na polícia. O argumento, baseado no livro do jornalista Peter Maas sobre esta questão, descreve o percurso de Frank Serpico (Al Pacino) de forma bastante linear, apesar de as cenas iniciais mostrarem o desfecho da sua carreira: alvejado na cara durante uma operação, ficou com sequelas físicas que o incapacitaram. Logo nessa cena, sugere-se que o acidente pode ter sido facilitado pela negligência dos agentes que o acompanhavam, devido à impopularidade de Serpico entre os colegas. O longo flashback que aí começa mostra como essa alienação ganhou forma, essencialmente devido à recusa de Serpico em compactuar com a cultura de subornos e extorsão tolerada pelas chefias, que fingiam prestar atenção às denúncias, mas nada faziam de concreto. Este filme, um projecto acarinhado pelo produtor Dino De Laurentiis, sofreu numerosos atrasos devido a conflitos entre os argumentistas, o realizador inicialmente escolhido (John G. Avildsen, que alcançaria a fama em 1976, com Rocky), o produtor e os próprios Pacino e Serpico. Lumet, recrutado para substituir Avildsen, não teve, claramente, ocasião de imprimir um cunho pessoal ao filme. A personagem principal, na sua obstinação em fazer aquilo que acha correcto, apesar da pressão dos pares, faz lembrar as de Henry Fonda em Doze Homens em Fúria (1957) e de Paul Newman em O Veredicto (1982), também eles sós contra o mundo. Contudo, a história desenvolve-se em moldes muito simples, à base de cenas curtas sem outra função que não seja a de fazer avançar o enredo. As mais interessantes são aquelas em que vemos Serpico longe da polícia, por exemplo durante a sua relação com uma mulher do meio artístico, pois asseguram um retrato mais completo da personagem, reforçando a ideia de que o seu habitat se situa nas ruas, de preferência à paisana para não sobressair, e tornando claras as suas dificuldades de integração num ambiente doméstico ou em dinâmicas sociais. Serpico ressente-se dos conflitos que marcaram a sua génese e que provavelmente contribuíram para ter ficado a meio caminho entre um filme essencialmente biográfico e um filme mais abrangente e ambicioso, menos centrado na personagem principal. Não lhe faltam, no entanto, motivos de interesse. A realização de Lumet é, como seria de esperar, eficaz e inteligente. As cenas de exterior são intensas e convincentes. Há personagens secundárias, como o chefe Green (John Randolph), que resistem à omnipresença voraz de Pacino (nomeado para os Óscares por este filme – perdeu para Jack Lemmon). Em suma, Serpico é um membro digno da longa linhagem de filmes norte-americanos sobre personagens virtuosas que combatem situações iníquas, mas não se pode dizer que seja inesquecível.
 
Outros filmes de Sidney Lumet no Cinéfilo Preguiçoso: Doze Homens em Fúria (1957), Network (1976), O Veredicto (1982).

16 de outubro de 2022

Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois

Por acaso, o Cinéfilo Preguiçoso conhece bem duas zonas cinematográficas de Lisboa: durante dez anos viveu em Telheiras, bairro que costuma figurar nos filmes de João Nicolau e Miguel Gomes; e actualmente vive em Alvalade, bairro frequentado e/ou filmado, no passado, por realizadores como Paulo Rocha, João César Monteiro e Fernando Lopes, e, no presente, por João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, que aí moram também. A ideia inicial de Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois (João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, 2022), visto no Doclisboa, foi replicar os planos de Os Verdes Anos (Paulo Rocha, 1963) nos mesmos espaços (principalmente em Alvalade, mas não só), como são agora, numa reflexão sobre o que resta do cinema quando são suprimidas as personagens e a narrativa e permanece a memória destas. O facto de o início da rodagem ter coincidido com o princípio da pandemia e do primeiro confinamento em Portugal acrescentou mais uma camada ao filme. Onde Fica Esta Rua?, portanto, investiga Lisboa também durante um episódio da nossa História recente, que nos revelou a cidade tal como ela é, temporariamente liberta do ramerrame dos transeuntes e dos turistas, num sossego inquietante. Os Verdes Anos, apesar de tantas vezes ser descrito em tom hiperbólico e pomposo como uma espécie de símbolo do novo cinema português, fazendo temer o pior, é um filme surpreendentemente ágil e escorreito sobre uma relação que acaba mal entre um rapaz que vem do campo e uma rapariga já integrada na cidade. É interessante ver a sua influência na obra de um cineasta mais barroco, como João Pedro Rodrigues, que aqui assume uma maior contenção, filmando uma cidade em suspenso, povoada por pequenos incidentes encenados que parecem embriões ou vestígios de narrativa, e percorrida por Isabel Ruth, protagonista do filme de Paulo Rocha. Os espectadores podem dar por si a recordar Querido Diário (Nanni Moretti, 1993), um filme muito diferente, mas em que também se explora uma cidade vazia (Roma no Verão) que é amada por um realizador. Sem dúvida, terá sido este movimento de errância espaciotemporal a suscitar os elogios que Laurie Anderson fez ao filme durante o Festival de Locarno, provavelmente mesmo sem conhecer o filme de Paulo Rocha. Outro filme muito diferente, mas com pontos de contacto, é Son nom de Venise dans Calcutta désert (1976), em que Marguerite Duras sobrepõe a banda sonora e os diálogos de India Song (1975) a cenários diferentes, abandonados e degradados. Onde Fica Esta Rua? é um filme comovente, que nos revela o passado e o presente dentro do cinema e fora dele, aliando o prazer da repetição ao prazer do reconhecimento, ao mesmo tempo que mostra como estes podem dar lugar à criação de um novo objecto artístico.

Ler também: O Ornitólogo (João Pedro Rodrigues, 2016).

9 de outubro de 2022

Ilusões Perdidas

As adaptações da obra de Balzac não têm ficado na história do cinema. Se exceptuarmos as que Jacques Rivette realizou, muito livres e nada ortodoxas, predominam as obras convencionais, frequentemente próximas de um realismo pouco ambicioso e cheio de reverência pela monumentalidade da Comédia Humana. Curiosamente, as adaptações televisivas são muito mais numerosas do que as cinematográficas. Ilusões Perdidas (2021), que passou recentemente pelas salas e entretanto o Cinéfilo Preguiçoso gravou num canal de televisão, consegue destacar-se desta massa um tanto amorfa, apesar de nem a sua estrutura nem o seu estilo serem inovadores. O filme é escrito em parceria, pelo crítico e argumentista Jacques Fieschi e o realizador, Xavier Giannoli, que já tem uma carreira sólida mas que nunca alcançou o reconhecimento de cineastas da mesma geração como, por exemplo, François Ozon e Christophe Honoré. Dando mostras de sensatez, os argumentistas optaram por se concentrarem na secção central do romance de Balzac, sobre a ascensão e queda do protagonista, Lucien de Rubempré, que, tal como o autor, veio da província para Paris e teve de aprender a lidar com as tentações e os códigos sociais da capital. (Fica de fora a parte final, que se situa na terra natal de Lucien e culmina no encontro com Vautrin, personagem central da Comédia, abrindo caminho para o monumental Esplendores e Misérias das Cortesãs.) Uma adaptação integral levaria a que o filme, que mesmo assim dura duas horas e meia, se arrastasse para lá do razoável. O principal fio condutor do enredo é o dinheiro: tudo se compra, na arte como na política, incluindo os aplausos e apupos nas estreias, as críticas favoráveis e desfavoráveis e os títulos de nobreza; Lucien abraça essa venalidade sem ter a experiência nem a sagacidade para se defender das suas consequências nem dos inimigos que o sucesso lhe traz. O filme capta competentemente a essência dos romances de Balzac, ao retratar a sociedade como produto da interacção dinâmica e conflituosa entre as paixões e fraquezas individuais, por um lado, e as instituições, leis e convenções, por outro. A crítica da corrupção e da venalidade é intemporal, mas a referência abundante aos processos de criação e disseminação de notícias falsas é dolorosamente actual. É triste constatar que não houve grande evolução entre a França do princípio do século XIX e a era do Twitter e do Facebook. Estas críticas são sublinhadas pela voz do narrador, que parece abusar de fórmulas nada balzaquianas e um tanto superficiais. No final do filme, ficamos a saber que a narração sai da pena de Nathan, rival de Lucien que acaba por se aproximar deste, escrevendo posteriormente um romance baseado na sua vida. Em retrospectiva, esta revelação justifica o uso abundante da voz off. Merece ainda menção o elenco, muito rico e equilibrado. Não é tarefa fácil integrar de forma harmoniosa veteranos consagrados, como Gérard Depardieu, Jeanne Balibar ou André Marcon, e jovens como Benjamin Voisin (Lucien) e Vincent Lacoste (Lousteau) – ambos galardoados com césares por este filme –, sem esquecer o notável desempenho do actor (e realizador) canadiano Xavier Dolan, no papel de Nathan. Ilusões Perdidas não é uma obra-prima, mas tem muitos motivos de interesse e até é capaz de integrar o “top 10” das adaptações cinematográficas de Balzac, embora não tenha concorrentes muito interessantes.

2 de outubro de 2022

À Luz do Sol

Ultimamente, as estreias em sala não têm andado cativantes. Esta semana, depois de dar uma vista de olhos ao arquivo de filmes gravados em televisão, o Cinéfilo Preguiçoso decidiu ver À Luz do Sol (René Clément, 196o), a primeira adaptação ao cinema do romance The Talented Mr. Ripley, de Patricia Highsmith (1955). Neste romance, Highsmith cria aquele que viria a ser o seu herói mais famoso, Tom Ripley, uma personagem amoral e maleável, capaz de assumir várias identidades, e dotada de inúmeros talentos, entre os quais o de ser uma máquina criminosa eficiente. Como em Strangers on a Train, livro de Highsmith que em 1951 Hitchcock adaptara ao cinema, neste primeiro volume da série dedicada a esta personagem há uma atracção homoerótica mais ou menos subterrânea que acaba por se traduzir num crime: Ripley, um rapaz pobre e aparentemente com pouco potencial, é enviado a Itália pelos pais de Dickie Greenleaf com a missão de o fazer regressar aos Estados Unidos, mas acaba por o matar, apesar do fascínio que sente por ele. Nesta altura, Highsmith já era uma escritora conhecida, mas sem grande prestígio literário. René Clément, trabalhando com Paul Gégauff, argumentista que também colaborou com Éric Rohmer em O Signo do Leão (1962), adopta uma atitude condescendente em relação ao livro e universo de Highsmith, com o objectivo de «limar» aquilo que considera as inconsistências e imperfeições do texto: acrescenta umas poucas personagens e cenas para «dar contexto», suaviza a questão da atracção homoerótica, transformando-a num triângulo amoroso e, no fim, sugere que Ripley será punido pelos crimes cometidos. Já se percebeu entretanto que Patricia Highsmith é uma escritora que não será esquecida, ao contrário de muitos dos seus contemporâneos considerados mais importantes naquela época. Se o filme de René Clément continua a ser visto, é porque, por um lado, não conseguiu escamotear totalmente o universo da escritora e, por outro, expressou bem a atmosfera de ócio e luxo das temporadas que alguns americanos passavam no estrangeiro, também graças ao director de fotografia Henri Decaë e à cor das paisagens italianas. Obviamente, outro elemento decisivo para o facto de alguns considerarem À Luz do Sol uma obra de culto é a presença magnética (e a interpretação convincente) de Alain Delon, que este filme transformou numa estrela. Ainda assim, é preciso salientar que os protagonistas de Clément são bem mais desastrados, grosseiros e apalhaçados do que os de Highsmith. O Talentoso Mr. Ripley de Anthony Minghella (1999), um filme muitíssimo subestimado pela crítica quando estreou, não só é mais fiel ao espírito da escritora como também assenta na prestação talentosa de um trio de actores à altura das personagens: Matt Damon, que, no papel de protagonista, consegue apagar-se e neutralizar-se de um modo impressionante para uma estrela americana; Jude Law, talvez no seu melhor papel de sempre; e Philip Seymour Hoffman, exímio enquanto personagem snob e detestável, mas com classe. Para quem não conheça o livro de Patricia Highsmith e a adaptação de Minghella, À Luz do Sol, embora pareça preso de mais à sua época, capta habilmente o contraste entre o carácter idílico da paisagem italiana e a atmosfera ambígua e desconfortável da história. Os momentos mais conseguidos são aqueles em que acompanha o olhar e os passos meticulosos de Ripley/Delon sem o julgar. Infelizmente, nem sempre consegue suspender o moralismo e, do ponto de vista artístico, essa falha é fatal.