31 de janeiro de 2021

St. Elmo's Fire

St. Elmo’s Fire/O Primeiro Ano do Resto das Nossas Vidas (Joel Schumacher, 1985), visto em DVD, pode ser relacionado com os filmes The Breakfast Club (John Hughes, 1985) e Os Amigos de Alex/The Big Chill (Lawrence Kasdan, 1983). Todos três contam a história de um grupo de amigos: em The Breakfast Club temos um grupo de adolescentes no liceu; em St. Elmo’s Fire, os protagonistas saíram há um ano da Universidade de Georgetown, em Washington, e estão entre a adolescência e o início da idade adulta; as personagens de Os Amigos de Alex reencontram-se quinze anos depois do fim do curso. Nos três filmes, temos personagens muito diferentes entre si que durante algum tempo pensam que são parecidas e se confundem, para depois se separarem e distinguirem. Entre estes três títulos, talvez St. Elmo’s Fire seja aquele que mais reflecte o espírito do seu tempo: os anos da presidência de Ronald Reagan (1981-1989). Este filme, reunindo um elenco de jovens actores que depois teriam carreiras interessantes (Emilio Estevez, Rob Lowe, Andrew McCarthy, Demi Moore, Judd Nelson, Ally Sheedy, Andie MacDowell e Mare Winningham), foi muito criticado pelo facto de ter personagens imaturas, egoístas, frívolas e desprezíveis. É verdade que, trinta e seis anos depois de estrear, as personagens parecem ter vidas bem menos complicadas do que as que agora temos. Contudo, apesar de cultivar uma certa estética da superficialidade típica dos anos oitenta, St. Elmo’s Fire retrata sem hipocrisias uma fase da vida que se caracteriza pela indecisão e pela hesitação e, às vezes, também por algumas experiências totalmente fúteis. Além disso, explora de modo interessante as complicações da amizade. As relações entre as personagens de St. Elmo’s Fire são mais sofisticadas do que parecem, muitas vezes misturando o amor e a amizade: de certa forma, os protagonistas estão todos apaixonados uns pelos outros. Tímidos ou extrovertidos, conservadores ou artistas, cada um deles tem de descobrir quem é fora do grupo a que pertence. Para algumas personagens, isso implica separarem-se dos amigos de quem foram próximos durante tanto tempo, e perceberem que na verdade não querem aquilo que pensavam querer, nem são quem pensavam ser. Há personagens que pensam que querem casar-se, mas não conseguem ser fiéis ao parceiro, personagens casadas que decidem separar-se, democratas que afinal são republicanos, personagens com pais ricos que preferem ser independentes, amigos apaixonados pela mesma mulher, etc. (Em Os Amigos de Alex, pelo contrário, as personagens há muito perceberam que são diferentes, mas parecem chegar a uma base de entendimento ténue com aqueles de que entretanto se afastaram.) Entre The Breakfast Club, Os Amigos de Alex e St. Elmo’s Fire, talvez o terceiro seja o mais datado e menos interessante, mas funciona pelo menos como curiosidade histórica e como retrato da amizade no início da idade adulta, com momentos cativantes em quantidade suficiente para merecer mais do que a reputação sofrível que arrasta. Quem se interessa por música dos anos oitenta talvez continue a ouvir a canção de John Parr com o mesmo título do filme. Reza a história que John Parr, em pleno bloqueio criativo, só conseguiu compor alguma coisa quando, pondo de lado o filme, se inspirou na história de um atleta canadiano chamado Rick Hansen que, de cadeira de rodas, na altura fazia uma digressão de sensibilização para as lesões da medula espinhal intitulada  “Man in Motion Tour”.

24 de janeiro de 2021

A Voz da Lua

Em quase todos os filmes de Federico Fellini há uma personagem central que é exposta a um desfile de encontros, conversas, situações e recordações, chegando ao final deste percurso não necessariamente mais sábia, mas aparentemente mais capaz de tomar decisões sobre a sua vida. Neste sentido, o protagonista de A Voz da Lua (de 1990, gravado num canal de televisão), Ivo Salvini (excelente Roberto Benigni, muito mais subtil e contido do que nalguns papéis que lhe deram fama), é equiparável ao Moraldo de I Vitelloni (1953), ao Guido de Oito e Meio (1963), à Giulietta de Julieta dos Espíritos (1965) e ao Encólpio de Satyricon (1969). Também à semelhança de muitos filmes deste realizador, não existe uma linha narrativa clara em A Voz da Lua (apesar de adaptar, de forma livre, um romance de Ermano Cavazzoni), mas sim uma ideia e alguns elementos recorrentes, como o sapato da mulher amada que Ivo traz consigo, à laia de amuleto, ou a obsessão com a Lua e com a necessidade de a capturar. Ivo Salvini (apelido tristemente premonitório, hoje em dia associado a outro lunático bem mais perigoso) é uma criatura simples que, por vezes acompanhada por um ex-autarca com a mania da perseguição, erra pelas ruas de uma cidadezita italiana e pelos seus arredores ermos e banhados pelo luar. Os encontros que vai tendo servem para Fellini lançar ferroadas à sociedade do espectáculo e para se entregar a descrições humorísticas dos hábitos populares e pequeno-burgueses. Mais uma vez, isto não é novidade na obra felliniana (recorde-se, por exemplo, Ginger e Fred, de 1986, ou Roma, de 1972). Entre tantas afinidades, aquilo que distingue A Voz da Lua talvez seja a moderação pictórica, aliada a uma presença menos pronunciada de elementos oníricos, apesar do lirismo de alguns momentos: pela sua delicadeza, ligeireza e comicidade discreta, o filme convida o leitor a revisitar, mentalmente ou de outra forma, a obra de um realizador imenso, cujo 101º aniversário se comemorou há poucos dias mas que não envelheceu nem um pouco apesar de muitas vezes fazer opções estéticas associadas à época em que foram tomadas (por exemplo o neo-realismo, ou o psicadelismo dos anos 60/70). A última frase pronunciada por Ivo, que é também a última linha de diálogo do cinema de Fellini, é um apelo ao silêncio: se todos se calassem, talvez percebêssemos melhor as coisas. Talvez seja a este silêncio que as personagens deste cineasta aspiram, e é possível que o cinema mostre que, por mais gárrulo e tortuoso que seja, o caminho para o silêncio existe.

17 de janeiro de 2021

Julieta dos Espíritos

Julieta dos Espíritos (1965), de Federico Fellini, é o filme desta semana, gravado num canal de televisão. Realizado a seguir a Oito e Meio (1963), foi o primeiro filme a cores de Fellini, revelando uma verdadeira reflexão e um grande investimento tanto técnico como dramático neste meio de expressão. (Acrescente-se que o restauro digital da cópia é soberbo.) A coincidência entre o nome da actriz principal (Giulietta Masina, mulher do realizador) e da protagonista desencadeou especulações, algumas um tanto ou quanto ingénuas, sobre a inspiração biográfica do filme. Houve quem pensasse que se tratava de um retrato da actriz; houve quem tentasse tornar esta primeira leitura mais sofisticada, sugerindo que sim, talvez fosse um retrato da actriz, mas tal como Fellini a via, e não como ela era realmente; houve também críticos que defenderam que seria antes uma espécie de auto-retrato de Fellini, projectado numa figura feminina. Tantos anos depois, a questão das inspirações exploradas é secundarizada pelo facto de o filme continuar a ser um portento visual que maravilha ou espanta qualquer espectador. O enredo conta-se numa frase: uma mulher descobre que o marido tem uma relação extraconjugal. Note-se, no entanto, que Julieta dos Espíritos tem tanto impacto visual, que mesmo sem esta informação seria um prazer vê-lo, e nem a narrativa nem os diálogos assumem grande importância, o que aliás corresponde à ambição, revelada numa entrevista, do cineasta. O que nos enche de assombro neste filme é o modo como a vida mental da protagonista é vertida em imagens: Julieta move-se num mundo povoado por fantasmas, memórias, desejos e fantasias, entre recordações do avô e da educação católica, imagens do circo,  sessões espíritas, conversas sobre astrologia, reuniões com detectives, passeios pela praia e encontros com uma vizinha de moral duvidosa. Para Fellini, estes sonhos e fantasias correspondem à vida real das pessoas; o neo-realismo não é suficiente para expressar esta dimensão. Fazendo lembrar a impassibilidade de Mastroianni em Oito e Meio, acossado por uma fauna de personagens estranhas e pletóricas, a contenção e a opacidade de Giulietta Masina, em contraste com a exuberância e o histrionismo dos outros actores e actrizes ou personagens, impedem o filme de descarrilar totalmente para o descontrolo imagético que o ameaça em quase todos os momentos. Outro grande prazer para o espectador de agora é ser recordado ao longo do filme de momentos da obra de outros realizadores, como Luca Guadagnino, Paolo Sorrentino, Pedro Almodóvar e Woody Allen, inequivocamente influenciados ou por este filme ou pela filmografia de Fellini como um todo. Quem falou da influência como angústia? Em muitos casos, é só um mecanismo que amplia o prazer do espectador. Mesmo não sendo um dos melhores filmes de Fellini, Julieta dos Espíritos é uma obra-prima que inspirou e tornou possível a obra de vários realizadores importantes que vieram a seguir, e continua a ser melhor e mais esteticamente arrojada do que quase 99% do que se realiza nos tempos que correm.

10 de janeiro de 2021

Being There | My Dinner with Andre

O Cinéfilo Preguiçoso aproveitou bem a pausa festiva e decidiu destacar dois dos filmes que viu. Bem-Vindo Mr. Chance/Being There (1979), visto num canal de televisão, é um filme realizado por Hal Ashby, o autor do muito recomendável Harold and Maude (1971). A personagem principal é um jardineiro de meia-idade, ingénuo e analfabeto, que contacta com o mundo exterior pela primeira vez quando o patrão morre, acabando por conquistar a confiança de um banqueiro influente de Washington, graças a uma série de coincidências e mal-entendidos. A crítica social é evidente e intemporal: o retrato de um homem pouco educado e sem experiência política ou densidade intelectual que, de um dia para o outro, se infiltra nas altas esferas da política e chega a ser considerado um bom candidato à presidência encontra ecos deprimentes na época que atravessamos – embora, admita-se, as diferenças entre Chance e Donald Trump sejam maiores do que as semelhanças. A um nível mais subtil, Being There funciona também como denúncia da obsessão com a interpretação e com o sentido figurado dos discursos: as frases, totalmente literais, de Chance sobre jardinagem e sobre a passagem das estações são encaradas pelos que as escutam como reflexões profundas sobre economia. A interpretação de Peter Sellers roça a perfeição, como seria de esperar, embora o tom persistentemente neutro inerente à personagem acabe por se tornar algo entediante. My Dinner with Andre (1981), de Louis Malle, visto em DVD, é protagonizado pelos actores e encenadores Wallace Shawn e André Gregory. Com excepção de uma introdução e de um curtíssimo epílogo narrados por Shawn, o filme consiste inteiramente no jantar que os dois partilham num restaurante de Nova Iorque. A conversa começa por se centrar nos episódios narrados por Gregory, quase todos relacionados com actividades no teatro de vanguarda: oficinas, encenações e bizarros rituais colectivos. Na segunda parte, as intervenções de Shawn, que contrapõe às divagações e dúvidas existenciais de Gregory uma perspectiva muito mais terra-a-terra, tornam-se mais frequentes. Embora a discussão tenha interesse por si só, o mérito principal de My Dinner with Andre é a maneira engenhosa como Malle explora um registo que combina documentário e ficção: por um lado, Shawn e Gregory representam-se a eles mesmos (ou versões ficcionadas deles mesmos), são homens do teatro e colaboradores de longa data, e fazem referência a episódios e pessoas reais; por outro, são personagens de uma história e o filme não abdica de algumas convenções do cinema de ficção, como a unidade de tempo e de espaço e a existência de uma linha narrativa. O resultado é um filme desconcertante e inteligente, que, contra tudo o que seria de esperar, se transformou numa obra de culto com repercussões na cultura popular, incluindo paródias em sitcoms como Os Simpsons ou Frazier.