Será que, em Portugal, Passages (Ira Sachs, 2023) não vai estrear em sala? Por via das dúvidas, como gostou muito de ver O Amor É Uma Coisa Estranha (2014) e Homenzinhos (2016), do mesmo realizador, o Cinéfilo Preguiçoso decidiu ver este filme em DVD. Se os dois títulos referidos deixam os espectadores com a sensação de que assistem à vida em si, Passages leva esta ideia muito mais longe. Em Tomas (Franz Rogowski), temos uma personagem que é puro desejo em movimento – uma força da natureza. As cenas longas em que Tomas percorre as ruas de Paris de bicicleta ilustram bem a dinâmica do filme. Oscilando entre o marido (Martin/Ben Whishaw) e uma mulher (Agathe/Adèle Exarchopoulos) com quem começa a relacionar-se numa discoteca, Tomas, realizador de cinema, espalha a infelicidade e a insatisfação em seu redor. Mais do que hesitação, estas oscilações parecem sugerir o desejo de fazer coexistir na sua vida o amor de Martin e Agathe, sem que um exclua o outro. O realizador explora toda esta fluidez, assim como a inevitável frustração de Tomas, filmando as personagens em situações desconfortáveis, mas sem grandes excessos melodramáticos nem preocupações psicológicas ou moralizantes: vemos simplesmente as acções de Tomas e as reacções das outras personagens. O filme depende muito da linguagem corporal dos actores e da capacidade destes de comunicarem sem palavras. Numa entrevista, Sachs falou da influência de John Cassavetes. Ao contrário do que se passa no cinema de Cassavetes, porém, as personagens de Sachs não passam muito tempo a reflectir sobre a sua própria definição. Passages é um filme forte e com um impacto visual que não será fácil esquecer, mas deixa a sensação de que beneficiaria com o desenvolvimento da componente reflexiva das personagens e com a atribuição de mais tempo e espaço aos actores para comporem as suas personagens.
Cinéfilo Preguiçoso
Alda Rodrigues e Alexandre Andrade
14 de abril de 2024
Retrato de Família com Teatro de Marionetas
7 de abril de 2024
Ursos Não Há
De certeza que poucos realizadores contemporâneos terão reflectido sobre a importância do acto de filmar e, por extensão, do próprio cinema, com a urgência e a intensidade de Jafar Panahi. Mesmo depois de ter sido proibido de filmar pelo governo iraniano, em 2010, Panahi continua a realizar e fá-lo com uma liberdade de pensamento e uma ironia surpreendentes, tendo em conta o contexto que o condiciona e os perigos a que se expõe. Em Ursos Não Há (2022), Panahi assume mais uma vez a sua própria personagem: um realizador de meia-idade cordial e cheio de boa-vontade, mas perplexo com as complicações, regras e tradições que dificultam a vida das pessoas e lhes desgastam a vontade de viver, a ponto de conduzirem a desfechos trágicos. A personagem de Panahi instala-se numa aldeia isolada, com acesso limitado à rede telefónica e à Internet, perto da fronteira com a Turquia, para realizar à distância um filme rodado neste país, inspirado pela história (que mais tarde percebemos ser «real») de dois exilados iranianos que procuram asilo em França. As actividades do realizador, com os seus aparelhos que captam imagens, são encaradas com desconfiança pelos aldeãos, que cultivam uma atitude simplória, mas esta situação torna-se problemática quando o primeiro, sem dar por isso, tira uma fotografia a um jovem casal que mantém uma ligação clandestina. Obviamente, esta aldeia, apesar dos contrastes explorados pelos seus habitantes em relação à vida na cidade, é um microcosmo que exprime as tensões que caracterizam todo o Irão: uma atmosfera concentracionária em que qualquer pormenor, por muito insignificante que pareça, é pretexto para o exercício de uma autoridade e de um controlo violentos e incompreensíveis, por meio da imposição de regras e convenções que já não fazem sentido para ninguém. A denúncia de Panahi aplica-se também às condições de vida dos exilados na Turquia, sugerindo que a arbitrariedade, o preconceito e a injustiça não são exclusivos do Irão. O título do filme vem de uma conversa entre o realizador e um desconhecido, que lhe explica que, apesar de os «ursos» que são invocados na aldeia para impedir as pessoas de fazerem determinadas coisas não existirem, são eficazes para inspirar medo, à semelhança do que se passa com os inúmeros rituais que já perderam há muito o seu significado, ou nunca o tiveram, mas continuam a ser cumpridos para ameaçar as pessoas. Ursos Não Há desenvolve-se num crescendo de tensão que mostra que tanto a fotografia como o filme dentro do filme, apesar de inicialmente parecerem apenas actividades artísticas, são afinal muito mais do que isso, na medida em que examinam e questionam a vida real e têm consequências que podem ser decisivas. Se há quem se interrogue sobre a importância do cinema nos tempos que correm, Panahi responde de modo inequívoco: sem cinema, não há vida; o cinema é indissociável da vida. Ursos Não Há recebeu o Prémio Especial do Júri no Festival de Veneza, em 2022. Esperemos que Panahi continue a poder fazer e mostrar os seus filmes, e que a liberdade criativa que, milagrosamente, tem conseguido preservar um dia se transforme em liberdade plena.
Outros filmes de Jafar Panahi no Cinéfilo Preguiçoso: O Círculo (2000); Táxi (2015); Três Rostos (2018).
24 de março de 2024
O Ano Passado em Marienbad | Toute la Mémoire du Monde
17 de março de 2024
Saint Omer
Considerado pela crítica um dos melhores filmes de 2022 e premiado com o Leão de Prata no Festival de Veneza, Saint Omer (Alice Diop, 2022) estreou na TV Cine no dia 14 de Março e ainda bem que o Cinéfilo Preguiçoso reparou nisso. Esta longa-metragem tem alguns pontos em comum com o excelente Anatomia de Uma Queda (Justine Triet, 2023): são ambos «filmes de tribunal», em que assistimos ao julgamento de uma mulher desenraizada, tratada como outsider. Nos dois casos, somos convidados implicitamente a reflectir sobre as pressões a que as mulheres estão sujeitas numa sociedade não só patriarcal e misógina, mas também, no filme de Diop, colonialista e racista. Em ambos, nos interrogamos se estas «forças maiores» podem ou não ajudar a desencadear um crime. Saint Omer e Anatomia de Uma Queda são também, cada um à sua maneira, filmes poderosíssimos, baseados em palavras e depoimentos, com argumentos notáveis e excelentes actrizes: Anatomia de Uma Queda é mais cerebral; Saint Omer convoca referências obscuras, relacionadas tanto com a mitologia grega (o mito de Medeia) como com a cultura senegalesa (feitiçaria, etc.). Com autoria de Amrita David e da escritora Marie N’Diaye, o argumento do filme de Diop baseia-se nas transcrições do julgamento de Fabienne Kabou, uma estudante senegalesa, imigrante em França, que matou a sua própria filha de quinze meses; segundo Diop, que antes deste filme realizou apenas documentários, estes depoimentos já tinham um tom literário que considerou inspirador. Rama, a personagem principal do filme, é uma professora de literatura que assiste ao julgamento, identificando-se com a acusada, e grava os depoimentos, que depois escuta atentamente no quarto de hotel. A propósito do peso das palavras no filme, num dos seus momentos mais flagrantemente irónicos, uma professora de Filosofia explica que desencorajou a protagonista de estudar Wittgenstein na sua tese porque uma mulher africana nunca poderá compreender um filósofo austríaco e deve escolher um tema «mais próximo da sua cultura» – sem perceber que, por essa ordem de ideias, Wittgenstein também seria inacessível a uma mulher francesa como ela e a obra do próprio Wittgenstein se tornaria insignificante, por se circunscrever a um público demasiado restrito. Esta referência a Wittgenstein, de certo modo, chama a atenção para o que é inacessível às palavras («aquilo de que não se pode falar»). Por sua vez, do ponto de vista visual e conceptual, através de grandes planos, de clips de outros filmes, ou de flashbacks nem sempre fáceis de decifrar, que remetem para a infância de Rama, Alice Diop procura uma maneira de mostrar o que não pode ser visto. Na direcção de fotografia, temos Claire Mathon, que desempenhou as mesmas funções nos dois últimos filmes de Céline Sciamma: Retrato de Rapariga em Chamas (2019) e Petite Maman (2021). Curiosamente, Saint Omer partilha com Petite Maman um dos seus temas mais importantes – a relação entre mães e filhas, que, num dos momentos mais fortes e inesquecíveis do filme, leva uma personagem a descrever todas as mulheres como monstros, num tom que não é pejorativo. Em Saint Omer, temos a surpreendente tour de force de a reflexão sobre a maternidade se processar a partir de um infanticídio – porque, mais do que sobre a culpa ou a inocência, a longa-metragem de Diop é sobre a complexidade feminina. Vamos continuar a pensar neste filme durante muito tempo.
10 de março de 2024
Corpo e Alma
3 de março de 2024
Vanya on 42nd Street
Um dos momentos mais inesquecíveis de Vanya on 42nd Street (Louis Malle, 1994, disponível no YouTube) é o início: os actores/personagens percorrem as ruas movimentadas de Nova Iorque em direcção ao New Amsterdam Theater, num edifício abandonado na 42nd Street, para participarem numa espécie de representação informal da peça Tio Vânia, de Tchékhov. (A primeira vez que o Cinéfilo Preguiçoso viu este filme foi em Paris, num primeiro de Maio chuvoso de 2006. Como era Dia do Trabalhador, muitas coisas estavam fechadas, mas os cinemas continuavam a funcionar. Foi como se a escolha da sessão, o percurso até ao cinema e a espera na fila para a bilheteira também fizessem parte do filme.) Dentro do New Amsterdam Theater, os actores e a assistência, um grupo de convidados do encenador André Gregory, conversam descontraidamente – quando damos por isso, o que inicialmente parecia um diálogo de circunstância afinal já pertence à peça. Esta diluição de fronteiras entre vida e teatro é uma das características mais interessantes do filme de Louis Malle, que aqui adopta uma abordagem próxima da do documentário. Este filme nasceu quando o realizador assistiu a uma das representações informais que Gregory organizou desta peça, ao longo de cinco anos, em pequenos teatros ou outros espaços alternativos, às vezes até em apartamentos de amigos. Os actores de Vanya on 42nd Street (entre os quais se destacam Wallace Shawn, Julianne Moore, Brooke Smith, Larry Pine) conhecem tão bem o texto – uma adaptação de David Mamet, a partir de uma tradução literal de Vlada Chernomordik, que preserva a agilidade dos diálogos sem perder a sua literariedade – que parecem situá-lo na sua própria vida. A peça de Tchékhov, apesar de ser sobre russos do século XIX que vivem num sítio isolado e se interrogam sobre o sentido das suas vidas, poderia ser sobre aqueles nova-iorquinos que lhe dão vida num teatro em que não podem usar o palco porque umas ratazanas roeram umas cordas – ou até sobre nós. Aliás, é interessante notar como este texto de Tchékhov, graças à concentração da acção em determinado espaço, ao entrecruzamento das relações das personagens e aos confrontos verbais entre elas, tem funcionado como fonte de inspiração cinematográfica. Só no Cinéfilo Preguiçoso, já foi referido a propósito de Setembro (Woody Allen, 1987) e de Drive My Car (Ryusuke Hamaguchi, 2021). Há alguns pontos em comum entre este Vanya on 42nd Street e o excelente My Dinner with Andre (1981), em que Louis Malle já tinha trabalhado com André Gregory e Wallace Shawn: em ambos se filmam conversas entre personagens que reflectem sobre a sua própria vida. Tanto a conversa entre Gregory e Shawn como a representação da peça, a que assistimos em tempo real, podem transmitir a ilusão de que a câmara é usada como mero dispositivo de captação, num registo próximo do documentário. Com discrição e inteligência, Malle realizou estes dois objectos cinematográficos rigorosos e exaltantes, muito mais complexos e trabalhados do que à primeira vista pode parecer.
Outros filmes de Louis Malle no Cinéfilo Preguiçoso: Os Amantes (1958); Fogo-Fátuo (1963).