Considerado pela crítica um dos melhores filmes de 2022 e premiado com o Leão de Prata no Festival de Veneza, Saint Omer (Alice Diop, 2022) estreou na TV Cine no dia 14 de Março e ainda bem que o Cinéfilo Preguiçoso reparou nisso. Esta longa-metragem tem alguns pontos em comum com o excelente Anatomia de Uma Queda (Justine Triet, 2023): são ambos «filmes de tribunal», em que assistimos ao julgamento de uma mulher desenraizada, tratada como outsider. Nos dois casos, somos convidados implicitamente a reflectir sobre as pressões a que as mulheres estão sujeitas numa sociedade não só patriarcal e misógina, mas também, no filme de Diop, colonialista e racista. Em ambos, nos interrogamos se estas «forças maiores» podem ou não ajudar a desencadear um crime. Saint Omer e Anatomia de Uma Queda são também, cada um à sua maneira, filmes poderosíssimos, baseados em palavras e depoimentos, com argumentos notáveis e excelentes actrizes: Anatomia de Uma Queda é mais cerebral; Saint Omer convoca referências obscuras, relacionadas tanto com a mitologia grega (o mito de Medeia) como com a cultura senegalesa (feitiçaria, etc.). Com autoria de Amrita David e da escritora Marie N’Diaye, o argumento do filme de Diop baseia-se nas transcrições do julgamento de Fabienne Kabou, uma estudante senegalesa, imigrante em França, que matou a sua própria filha de quinze meses; segundo Diop, que antes deste filme realizou apenas documentários, estes depoimentos já tinham um tom literário que considerou inspirador. Rama, a personagem principal do filme, é uma professora de literatura que assiste ao julgamento, identificando-se com a acusada, e grava os depoimentos, que depois escuta atentamente no quarto de hotel. A propósito do peso das palavras no filme, num dos seus momentos mais flagrantemente irónicos, uma professora de Filosofia explica que desencorajou a protagonista de estudar Wittgenstein na sua tese porque uma mulher africana nunca poderá compreender um filósofo austríaco e deve escolher um tema «mais próximo da sua cultura» – sem perceber que, por essa ordem de ideias, Wittgenstein também seria inacessível a uma mulher francesa como ela e a obra do próprio Wittgenstein se tornaria insignificante, por se circunscrever a um público demasiado restrito. Esta referência a Wittgenstein, de certo modo, chama a atenção para o que é inacessível às palavras («aquilo de que não se pode falar»). Por sua vez, do ponto de vista visual e conceptual, através de grandes planos, de clips de outros filmes, ou de flashbacks nem sempre fáceis de decifrar, que remetem para a infância de Rama, Alice Diop procura uma maneira de mostrar o que não pode ser visto. Na direcção de fotografia, temos Claire Mathon, que desempenhou as mesmas funções nos dois últimos filmes de Céline Sciamma: Retrato de Rapariga em Chamas (2019) e Petite Maman (2021). Curiosamente, Saint Omer partilha com Petite Maman um dos seus temas mais importantes – a relação entre mães e filhas, que, num dos momentos mais fortes e inesquecíveis do filme, leva uma personagem a descrever todas as mulheres como monstros, num tom que não é pejorativo. Em Saint Omer, temos a surpreendente tour de force de a reflexão sobre a maternidade se processar a partir de um infanticídio – porque, mais do que um filme sobre culpa ou inocência, a longa-metragem de Diop é sobre a complexidade feminina. Vamos continuar a pensar nele durante muito tempo.
Cinéfilo Preguiçoso
Alda Rodrigues e Alexandre Andrade
17 de março de 2024
10 de março de 2024
Corpo e Alma
3 de março de 2024
Vanya on 42nd Street
Um dos momentos mais inesquecíveis de Vanya on 42nd Street (Louis Malle, 1994, disponível no YouTube) é o início: os actores/personagens percorrem as ruas movimentadas de Nova Iorque em direcção ao New Amsterdam Theater, num edifício abandonado na 42nd Street, para participarem numa espécie de representação informal da peça Tio Vânia, de Tchékhov. (A primeira vez que o Cinéfilo Preguiçoso viu este filme foi em Paris, num primeiro de Maio chuvoso de 2006. Como era Dia do Trabalhador, muitas coisas estavam fechadas, mas os cinemas continuavam a funcionar. Foi como se a escolha da sessão, o percurso até ao cinema e a espera na fila para a bilheteira também fizessem parte do filme.) Dentro do New Amsterdam Theater, os actores e a assistência, um grupo de convidados do encenador André Gregory, conversam descontraidamente – quando damos por isso, o que inicialmente parecia um diálogo de circunstância afinal já pertence à peça. Esta diluição de fronteiras entre vida e teatro é uma das características mais interessantes do filme de Louis Malle, que aqui adopta uma abordagem próxima da do documentário. Este filme nasceu quando o realizador assistiu a uma das representações informais que Gregory organizou desta peça, ao longo de cinco anos, em pequenos teatros ou outros espaços alternativos, às vezes até em apartamentos de amigos. Os actores de Vanya on 42nd Street (entre os quais se destacam Wallace Shawn, Julianne Moore, Brooke Smith, Larry Pine) conhecem tão bem o texto – uma adaptação de David Mamet, a partir de uma tradução literal de Vlada Chernomordik, que preserva a agilidade dos diálogos sem perder a sua literariedade – que parecem situá-lo na sua própria vida. A peça de Tchékhov, apesar de ser sobre russos do século XIX que vivem num sítio isolado e se interrogam sobre o sentido das suas vidas, poderia ser sobre aqueles nova-iorquinos que lhe dão vida num teatro em que não podem usar o palco porque umas ratazanas roeram umas cordas – ou até sobre nós. Aliás, é interessante notar como este texto de Tchékhov, graças à concentração da acção em determinado espaço, ao entrecruzamento das relações das personagens e aos confrontos verbais entre elas, tem funcionado como fonte de inspiração cinematográfica. Só no Cinéfilo Preguiçoso, já foi referido a propósito de Setembro (Woody Allen, 1987) e de Drive My Car (Ryusuke Hamaguchi, 2021). Há alguns pontos em comum entre este Vanya on 42nd Street e o excelente My Dinner with Andre (1981), em que Louis Malle já tinha trabalhado com André Gregory e Wallace Shawn: em ambos se filmam conversas entre personagens que reflectem sobre a sua própria vida. Tanto a conversa entre Gregory e Shawn como a representação da peça, a que assistimos em tempo real, podem transmitir a ilusão de que a câmara é usada como mero dispositivo de captação, num registo próximo do documentário. Com discrição e inteligência, Malle realizou estes dois objectos cinematográficos rigorosos e exaltantes, muito mais complexos e trabalhados do que à primeira vista pode parecer.
Outros filmes de Louis Malle no Cinéfilo Preguiçoso: Os Amantes (1958); Fogo-Fátuo (1963).
25 de fevereiro de 2024
Os Excluídos
18 de fevereiro de 2024
O Grupo
11 de fevereiro de 2024
Vidas Passadas
4 de fevereiro de 2024
Anatomia de Uma Queda
Quando vemos Anatomia de Uma Queda (Justine Triet, 2023), premiado com a Palma de Ouro, recordamos inevitavelmente um filme que estreou em Portugal há mais ou menos um ano: Tár (Todd Field, 2022). Ambos têm como protagonista uma mulher forte que cai em desgraça por motivos que não ficam totalmente esclarecidos. Nos dois filmes, damos por nós a perguntar-nos se desconfiamos da protagonista apenas por ser uma mulher com sucesso – uma figura tão rara, que só pode ter conquistado esse estatuto de modo desonesto, manipulando todos, claro. Talvez por explorar mais a noção de narrativa, Anatomia de Uma Queda é menos intenso do que Tár. Enquanto no filme de Todd Field estamos dentro da cabeça em desintegração da protagonista, no de Justine Triet situamo-nos numa sala de tribunal, um local onde todos tentam impor a sua própria descrição dos factos, sabendo que ganhará não a verdade, mas a versão mais convincente – como aliás afirma explicitamente um dos advogados. Sandra Voyter (Sandra Hüller), a protagonista sobre quem recai a suspeita de ter matado o marido, um escritor frustrado que supostamente lhe faz a vida negra, é, além disso, uma romancista de sucesso – portanto, alguém que sabe contar histórias. Esta capacidade reforça a desconfiança que suscita: em tribunal, o advogado da acusação chega a ler passagens dos seus livros para a incriminar. Enquanto espectadores, temos acesso apenas a um momento da vida deste casal, através do registo sonoro de uma discussão, feito pelo marido, e mesmo esta situação deixa lugar a dúvidas. É o único momento em que vemos o marido em acção; de resto, ele é sempre descrito por outros. Em contraponto aos relatos da protagonista, temos os depoimentos contraditórios das testemunhas, mas também os do filho do casal, não menos contraditórios. O filho, deficiente visual desde um atropelamento que ajudou a minar a relação entre os pais, é uma personagem crucial, que durante grande parte do filme parece ser a única pessoa que quer descobrir a verdade, em vez de impor uma versão própria dos factos. Como nunca ficamos com a sensação de que sabemos o que realmente aconteceu, podemos descrever Anatomia de Uma Queda como um filme que reflecte sobre o conceito de narrativa, mas sem propor uma narrativa unificadora. O Cinéfilo Preguiçoso já tinha visto um filme de Justine Triet (Sibyl, 2019), com temas e personagens relativamente próximos (escritores, psicanalistas e realizadores), mas Anatomia de Uma Queda é bastante melhor, por se dispersar menos em caminhos secundários. Como já tantos sublinharam, Sandra Hüller é uma actriz notável, mas convém destacar também mais dois actores: no papel de advogado de defesa, Swann Arlaud, de quem já vimos também um desempenho (ainda mais) impressionante, no papel de Yann Andréa, em Quero Falar sobre Marguerite Duras (Claire Simon, 2021); e ainda, no papel do filho cego, o extraordinário Milo Machado Graner (que esperamos ver em breve no próximo filme de Arnaud Desplechin).