30 de setembro de 2018

The Seasons in Quincy: Four Portraits of John Berger


The Seasons in Quincy (2016) é um documentário constituído por quatro curtas-metragens realizadas autonomamente, por realizadores diferentes, ao longo de cinco anos, sobre o intelectual e «contador de histórias» (era assim que preferia que lhe chamassem) John Berger (1926-2017). Estes filmes, de qualidade irregular, seguem o ritmo das estações na aldeia nos Alpes onde Berger vive desde 1973, traçando um retrato mais poético do que informativo de algumas das suas facetas – enquanto artista, ensaísta, romancista, contista, activista, apresentador de programas de televisão sobre arte, amigo, pai, marido – por meio de conversas, imagens de arquivo, leituras de textos, imagens da sua casa e da arte que possui ou produziu. A segunda e a terceira curtas-metragens («Spring», real. Christopher Roth, e «A Song for Politics», real. Bartek Dziadosz e Colin MacCabe) exploram vertentes mais públicas da vida de Berger, nomeadamente a sua perspectiva sobre a relação entre os seres humanos e os animais, e uma conversa sobre o capitalismo com vários intervenientes, entre os quais o escritor Ben Lerner. A primeira («Ways of Listening», real. Colin MacCabe) e a quarta («Harvest», real. Tilda Swinton), sobre dimensões mais privadas, são, no entanto, mais interessantes. A primeira acompanha o reencontro entre Berger e Tilda Swinton, que, partilhando a mesma data de aniversário com trinta e quatro anos de diferença, explicam que sempre tiveram uma ligação especial, como se ambos já se conhecessem há muito tempo e tivessem «saído na mesma estação de comboio». A quarta curta-metragem tem como intervenientes principais os filhos gémeos de Tilda Swinton e o próprio filho de Berger, que exploram o espaço de Quincy na sua ausência. Não sendo uma obra-prima inesquecível, The Seasons in Quincy distingue-se por um ritmo bucólico e lento que propicia a reflexão, incluindo alguns momentos comoventes,  como aquele em que os filhos de Tilda Swinton comem framboesas em frente da fotografia daquela que plantou os seus arbustos (Beverly, a terceira mulher de Berger, que aparece na primeira curta-metragem, mas que já tinha morrido quando «Harvest» foi filmada). Funciona tanto enquanto homenagem como enquanto apresentação ao universo de uma figura riquíssima que, talvez pela dimensão e pelo carácter polifacetado da sua obra, ainda não é tão conhecida e valorizada como com toda a certeza virá a ser. The Seasons in Quincy é uma produção do Derek Jarman Lab, um centro de investigação sobre cinema associado à Universidade de Birkbeck, em Londres.

23 de setembro de 2018

Moonrise


Apesar de já estarmos perto do fim de Setembro, o panorama de estreias continua pouco inspirador. Felizmente, na Double Bill deste sábado, a Cinemateca passou um filme de Frank Borzage que o Cinéfilo Preguiçoso ainda não tinha visto: Moonrise/Consciência em Paz (1948), considerado a sua última grande obra no cinema sonoro. Quem já viu alguns filmes mudos deste realizador, como Lucky Star, Liliom, 7th Heaven ou Street Angel, todos eles delicadíssimos, quase oníricos, talvez não espere uma atmosfera tão sombria como a deste filme. Moonrise é um filme sobre a culpa e heranças difíceis. Uma grande parte decorre sob a lógica do pesadelo, para a qual contribuem os raccords e o carácter inesperado de certos planos, alguns dos quais evocam a herança do mudo e do expressionismo alemão. Danny Hawkins (Dane Clark), o protagonista, vai agindo irracionalmente em cenários estranhos e inquietantes – um pântano, um parque de diversões onde se julga perseguido, uma velha mansão decrépita e aparentemente abandonada, a casa de um amigo negro (sem dúvida uma das personagens mais interessantes do filme) que se afastou das pessoas para viver só com os cães que cria, a casa de um segundo amigo, surdo-mudo que Danny protege da troça alheia. Quando Danny ainda era bebé, o pai foi enforcado por ter assassinado um homem. Desde esse momento, o filho carrega consigo uma culpa irracional, reforçada por todos aqueles que insistem em recordar-lhe permanentemente o crime do pai, tratando-o como se ele não só partilhasse dessa mácula, mas também estivesse condenado ao mesmo destino. A dada altura, uma das personagens comenta que a culpa, mesmo quando injustificada, tudo faz para suscitar a sua própria punição. Com efeito, o protagonista concretiza o destino a que os outros o condenavam e de que ele próprio não duvidava.  Só no momento em que, depois de uma fuga pelo pântano, regressa ao passado, visitando a avó e as sepulturas dos progenitores, alcança uma espécie de pacificação, ao compreender as razões para o crime do pai (que havia assassinado o médico que recusara assistência à sua mulher doente, que tinha acabado por morrer). Assumir plenamente a verdadeira herança do passado liberta-o para enfrentar o seu próprio futuro. Paradoxalmente, entregar-se à polícia é a primeira afirmação de liberdade na sua vida. O Cinéfilo Preguiçoso não ficou para a segunda sessão da Double Bill, com The Southerner, de Jean Renoir (1945), porque já tinha visto este filme e a preguiça falou mais alto.

16 de setembro de 2018

O Fantasma do Paraíso


Na ausência de propostas interessantes em sala, o Cinéfilo Preguiçoso optou por continuar a explorar a filmografia de Brian De Palma. Visto em DVD, O Fantasma do Paraíso (1974) pertence à fase mais delirante e desenfreada deste realizador. O argumento, que gira em torno da relação entre um compositor, Winslow Leach, e um produtor famoso, Swan, que se apropria da música deste para inaugurar uma sala de concertos megalómana, mistura referências ao mito de Fausto, ao Retrato de Dorian Gray e ao Fantasma da Ópera, além de piscadelas de olho pouco subtis ao cinema de Hitchcock, quase inevitáveis no De Palma deste período. Não faltam também extensos números musicais que são outras tantas paródias de estilos como o doo-wop, o surf rock e o glam rock mais ou menos heavy. O estilo é frenético e excessivo, aproximando-se da estética da banda desenhada. É notório que a caracterização psicológica das personagens, as leis da física e a verosimilhança não constavam da lista de preocupações de De Palma quando escreveu e realizou este filme. Em seu lugar, O Fantasma do Paraíso oferece-nos uma sucessão de peripécias mirabolantes, unidas por um nexo causal frágil e invariavelmente derivadas da sede de vingança de Leach e da ambição de Swan, únicas forças motrizes do filme, que se alimentam mutuamente. Repleto não só de invenções e surpresas na montagem e nos enquadramentos mas também de momentos de humor nem sempre conseguidos, O Fantasma do Paraíso é daqueles filmes em que o registo disparatado e extravagante é claramente deliberado. O balanço final, talvez mais do que na maioria dos filmes, depende do gosto de cada um. Neste caso, não custa admitir que a latitude das reacções potenciais seja ampla, da rejeição indignada à veneração, passando pela incredulidade. Para terminar com algumas trivialidades: Paul Williams, que representa o papel de Swan, escreveu as canções do filme e tem uma longa carreira de cantor e compositor, que inclui a letra do tema de abertura da mítica série The Love Boat; Jessica Harper, que neste filme encarna Phoenix, uma cantora que é objecto das atenções dos dois rivais, veio a participar em dois filmes de Woody Allen (Love and Death e Stardust Memories) e nos dois Suspiria, o original de Argento de 1977 e o remake de Guadagnino de 2018; os membros da banda Daft Punk confessaram ter visto O Fantasma do Paraíso mais de vinte vezes; o escritor Bret Easton Ellis, no seu elogio fúnebre do actor William Finley (Winslow Leach), declarou-se fã do filme.

9 de setembro de 2018

Blow Out


É quase impossível falar de um filme de Brian De Palma sem referir influências. No caso de Blow Out (1981, visto esta semana em DVD), além de Blow-up (1966), de Antonioni, de que é quase um remake, e das óbvias referências a Hitchcock (que aliás povoam toda a filmografia de De Palma), pode citar-se o magnífico The Conversation (1974), de Coppola, bem como a riquíssima tradição de filmes policiais de série B. Os actores, com a possível excepção de John Travolta (igual a si mesmo), adoptam um tom distanciado e exagerado, como se mais interessados em encarnar personagens típicas do film noir do que personagens dos anos oitenta. No argumento, com um técnico de som como protagonista, notam-se ainda ecos do caso Watergate e do escândalo de Chappaquidick, que marcou para sempre a carreira do senador Ted Kennedy: Jack Terry (Travolta) testemunha um acidente de automóvel onde morre um político famoso, captando por acaso o som deste acontecimento, e convence-se de que se tratou de homicídio. O que é notável, neste como noutros filmes de De Palma, é a maneira como este cineasta assume as influências de forma explícita, frequentemente ao nível do pastiche, sem por isso deixar de produzir uma obra original, poderosa e pessoal. O filme funciona em mais do que um nível: além de ser um thriller político filmado com dinamismo e competência, e de explorar aspectos técnicos com uma inteligência rara (as cenas que mostram Jack a gravar, reproduzir e sincronizar os sons são extraordinárias), Blow Out pode ser visto como uma reflexão sobre a capacidade de aceder à verdade dos factos, a posteriori, através da manipulação e harmonização de registos audiovisuais – ou seja, enquanto reflexão sobre o cinema. O espectador é livre de navegar entre estes diversos patamares. Acima de tudo, Blow Out, que pode ser visto como uma charneira entre a fase mais livre, inventiva e delirante da filmografia de De Palma e um período mais alinhado com os cânones de Hollywood (a partir de Scarface, de 1983), é, como aliás é comum aos filmes mais interessantes deste realizador, o retrato de uma obsessão, neste caso a obsessão por convencer o mundo de uma verdade incómoda. O facto de a versão de Jack ser a que corresponde à realidade não torna a sua obsessão menos doentia e perturbadora, e essa é mais uma das façanhas deste filme.

2 de setembro de 2018

Ama-San | Juliet, Nua


De regresso de férias, dois filmes. O fim do Verão é uma boa altura para se ver Ama-San, de Cláudia Varejão (2016). Este documentário segue o modo de vida de um grupo de mulheres japonesas que praticam o mergulho em apneia para pescarem abalones e outros moluscos comestíveis. É interessante o enorme contraste entre, por um lado, os rituais, o equipamento e os gestos específicos da profissão singular e arcaica que estas mulheres exercem e, por outro, a normalidade do seu quotidiano extraprofissional e familiar. A ausência de contextualização e informação (lembrando um pouco o estilo de Frederick Wiseman) sobre este ofício tradicional estranho ao olhar ocidental, embora por vezes seja um pouco desconcertante, convoca a atenção do espectador. Por esse motivo e também graças à beleza das imagens, Ama-San é um documentário que lava os olhos e talvez nos ajude a despedir do Verão. Quanto a Juliet, Nua (Jesse Peretz, 2018), baseado num romance de Nick Hornby com o mesmo título, o grande problema é não trazer nada de novo. Quem conhece a obra de Hornby e alguns filmes a que deu origem, como Alta Fidelidade (Stephen Frears, 2000) e Era Uma Vez Um Rapaz (Chris e Paul Weitz, 2002), não pode contar com grandes surpresas. Hornby costuma interessar-se por personagens falhadas e insatisfeitas com a estagnação da própria vida. As personagens de Juliet, Nua recordam imediatamente figuras e histórias de outros filmes – inspiradas por livros de Hornby e não só. Em Alta Fidelidade já tínhamos cromos aficionados por música muito semelhantes a Duncan (Chris O’Dowd). Já em Era Uma Vez Um Rapaz, o protagonista (Hugh Grant), um inventor da protecção de cartão para os copos de café que vivia dos rendimentos dessa criação, se cruzava com alguém (o miúdo referido no título) que o fazia ver a vida com novos olhos e começar do zero. Aliás, o mesmo Hugh Grant, no filme Música e Letra (Marc Lawrence, 2007), que não se baseia num livro de Nick Hornby, encarnava um músico numa fase decadente – a mesma situação de Tucker Crowe (Ethan Hawke) em Juliet, Nua. Será a imaginação do Cinéfilo Preguiçoso a fazer das suas, ou a caracterização de Tucker Crowe lembra a de Jeff Bridges em The Big Lebowski (Joel e Ethan Coen, 1998)? Em suma, Juliet, Nua é um filme bastante inofensivo, sem momentos altos nem intensidade, que cultiva uma melancolia morna também já vista noutros filmes.