26 de junho de 2022

Compartimento Número Seis

Quando pensamos em filmes que se passam em comboios, de quais nos lembramos imediatamente? O Cinéfilo Preguiçoso pensa logo em North by Northwest (Alfred Hitchcock, 1959), Antes do Amanhecer (Richard Linklater, 1995) e Darjeeling Limited (Wes Anderson, 2007). (Claro que há mais filmes em comboios, incluindo Europa, de Lars von Trier, e Hitchcock tem outros filmes em que este meio de transporte desempenha um papel mais importante, mas estes títulos são os primeiros que lhe ocorrem.) Frequentemente, os filmes em comboios acompanham personagens elegantíssimas que têm conversas espirituosas e marcantes, às vezes logo depois de se conhecerem. Em Compartimento Número Seis (Juho Kuosmanen, 2021), visto no videoclube de uma operadora de telecomunicações, nem as personagens são elegantíssimas, nem as conversas são apaixonantes. Adaptando um romance de Rosa Liksom (2011) com o mesmo título, este filme, que partilhou o Grande Prémio de Cannes com O Herói de Asghar Farhadi, conta a história de Laura, uma estudante finlandesa de arqueologia que em fins da década de 1990 faz uma viagem pela Rússia para aprender a língua. Incentivada por uma namorada que teve em Moscovo, decide ir de comboio até Murmansk, para ver os petróglifos, umas inscrições em rochas datadas do segundo ou terceiro milénio antes de Cristo. A viagem corre mal logo desde o princípio, quando a namorada decide não ir e Laura percebe que terá de partilhar durante vários dias o compartimento do comboio com Lyokha, um mineiro russo de aparência grosseira. Obviamente, estas duas personagens tão diferentes vão acabar por simpatizar uma com a outra, mas, em contraste com o que acontece num filme como Antes do Amanhecer, em que os protagonistas de ar angelical vivem uma aventura inesquecível, as personagens de Compartimento Número Seis parecem feias e antipáticas, e o realizador prefere explorar os contratempos, imprevistos e contrariedades que se desenrolam no ambiente claustrofóbico do comboio. Esta segunda longa-metragem de Juho Kuosmanen, realizador finlandês nascido em 1979,  tem algumas características interessantes: a reconstituição da atmosfera da década de 1990, com o walkman  e a câmara de vídeo da protagonista, cabines telefónicas em vez de telemóveis, e canções como Love is the Drug, dos Roxy Music, e Voyage Voyage, de Desireless, na banda sonora; o contraste entre a claustrofobia do comboio e os espaços vastos e vazios da Rússia; a ideia de que nem sempre aquela que parece a vida mais perfeita e com mais citações artísticas e literárias é a forma de existência mais genuína; a capacidade do realizador de captar a corrente subterrânea de entendimento entre os protagonistas, quando à superfície tudo aponta para o contrário; e também o facto de os espectadores não chegarem a ver os petróglifos – como acontece em tantas viagens, a importância do objectivo inicial dilui-se pelo caminho. Ainda assim, o facto de estas opções estéticas mais realistas não tornarem este filme melhor do que, por exemplo, o de Linklater lembra-nos que o cinema não é necessariamente um instrumento realista; pelo contrário, é uma forma de exercício de liberdade estética. Será que daqui a alguns anos vamos recordar Compartimento Número Seis? É duvidoso; depende do que o realizador fizer a seguir. Se recordarmos, talvez seja por se distinguir destes modos dos outros filmes que se passam em comboios.

19 de junho de 2022

Apresentação | Our Sunhi

Nos filmes de Hong Sang-Soo, é frequente encontrarmos personagens dependentes das opiniões alheias e indecisas quanto ao rumo a dar às suas vidas. Em Apresentação (2021), um dos dois filmes deste realizador estreados recentemente em sala, o protagonista é um jovem que hesita entre estudar no estrangeiro ou dedicar-se ao teatro. Essa decisão será condicionada pelas suas relações com o pai, com a namorada e com a mãe, mostradas de forma elíptica em cada uma das três secções deste filme com pouco mais de uma hora de duração. Não ficamos a saber qual será a decisão do jovem. Como costuma acontecer nos filmes de Hong, há pormenores formais e estruturais que podem sugerir uma resolução do enredo e dos conflitos emocionais das personagens, mas não são explícitos. O filme acaba com um abraço entre o jovem e um amigo que tenta aquecê-lo depois de um banho de mar que o deixou transido de frio. As secções anteriores também encerram com um abraço, mas este acontece depois de uma discussão sobre a seriedade e a autenticidade do acto de abraçar alguém, no contexto da representação teatral. Ainda que este abraço possa ter a mesma validade e intensidade para as personagens, o espectador vê-o de forma diferente. Dentro da filmografia de Hong, já de si caracterizada pela economia de meios e pela aposta na alusão em detrimento da explicação, Apresentação destaca-se por ser particularmente esparso e minimalista. Para perceber se se trata de uma nova tendência na obra deste cineasta, o Cinéfilo Preguiçoso gostava de ter visto também Perante o Teu Rosto (2021), mas não conseguiu, porque esteve pouco tempo em cartaz, num só cinema, e em horários pouco apropriados à vida de quem tem de trabalhar. (Será que esta situação beneficia os espectadores?) Sendo assim, para complementar a Double Bill de Hong Sang-Soo, teve de recorrer aos DVD. Em Our Sunhi (2013), temos mais uma vez uma personagem – recém-graduada de uma escola de cinema – prestes a mudar de vida, mas enredada numa teia de opiniões alheias sobre o seu carácter. Estas opiniões, dispensadas prolixamente por três homens que têm, ou tiveram, interesses românticos por ela, traduzem-se em cartas de recomendação de um ex-professor e em declarações emitidas durante conversas, quase sempre sob influência do álcool. Os elementos formais predominantes são as repetições e redundâncias, que acabam por esvaziar de conteúdo os juízos de valor das personagens masculinas, deixando Sunhi sozinha, talvez finalmente convencida de que terá de “escavar bem fundo” para se conhecer melhor e perceber aquilo de que é capaz – um dos conselhos de utilidade duvidosa que são repisados pelos interlocutores. Ao contrário de Oki em O Filme de Oki (2010), aliás interpretada pela mesma actriz (Jung Yu-Mi), Sunhi não ganha voz própria para reflectir sobre o que lhe aconteceu. Tal como em Apresentação, cabe ao espectador completar o percurso da personagem. Hong nunca, ou raramente, oferece soluções para as personagens, preferindo mostrar-nos um percurso susceptível de os libertar e de os fazer ver de forma mais clara os problemas que os atormentam, equipando-os para enfrentar o resto da vida. Esta abordagem, que pode parecer distante e carente de empatia, proporciona, bem pelo contrário, uma proximidade tocante de que muito poucos realizadores são capazes. Hong Sang-Soo ganhou o Leopardo de Prata de melhor realizador no festival de Locarno e o Urso de Prata para melhor argumento no festival de Berlim por Our Sunhi e Apresentação, respectivamente.
 
Outros filmes de Hong Sang-Soo no Cinéfilo Preguiçoso: A Virgem Desnudada pelos Seus Pretendentes (2000); Conto de Cinema (2005); Mulher na Praia (2006); O Filme de Oki (2010); The Day He Arrives (2011); Haewon e os Homens (2013); Right Now, Wrong Then (2015); On the Beach at Night Alone (2017); O Dia Seguinte (2017); Hotel à Beira-Rio (2018); A Mulher que Fugiu (2020). 

12 de junho de 2022

Erotikon | Angel

O Cinéfilo Preguiçoso aproveitou para ver a Double Bill desta semana na Cinemateca, onde foram exibidos os filmes Erotikon (Mauritz Stiller, 1920), com acompanhamento ao piano de João Paulo Esteves da Silva, e Angel (Ernst Lubitsch, 1937). Ambos giram em torno de um casal com um marido totalmente obcecado com a profissão e uma mulher que tem de se distrair de outros modos. A ironia instala-se logo no início de Erotikon, quando a mulher, depois de deixar à porta da universidade o marido, entomólogo famoso, puxa o caderninho em que apontou as tarefas do dia – 1. manicure; 2. ensinar o comerciante de peles a ser mais paciente; 3. subir aos céus com o barão Félix –, que têm de ser entendidas mais literalmente do que no início parece. Sempre hilariantes e surpreendentes, as ilustrações dos intertítulos, muitas delas de inspiração entomológica, dão o tom para este filme com personagens que têm aspirações existenciais e sentimentais surpreendentemente modernas. Estabelece-se um contraste entre o ambiente romântico, trágico e grandioso da ópera e do bailado, associado à mulher, e a atmosfera burguesa, em que se insere o marido. Para perturbar este esquema, no entanto, mesmo o marido dá mais importância às preocupações universitárias do que às convenções burguesas: recusa-se a participar num duelo para defender a honra enquanto não terminar o estudo dos escaravelhos azuis. Indiferentes a quaisquer preocupações associadas à respeitabilidade e aos bons costumes, todas as personagens acabam por conseguir o que querem através da substituição do par inicial por um quadrado. Tanto Erotikon como Angel adaptam textos prévios – o primeiro, a peça A Raposa Prateada, do húngaro Franz Herzeg; o segundo, uma peça do também húngaro Melchior Lengyel. No segundo caso, fazem-se algumas elisões e cortes no que toca ao passado e comportamento da protagonista que são concessões à moralidade vigente. Apesar disso, Angel mantém uma complexidade muitíssimo interessante, graças tanto à extraordinária encenação, que joga habilmente com quem sabe o quê, como ao impressionante desempenho de Marlene Dietrich, capaz de representar duas personagens diferentes numa só – por um lado, uma Lady casada com um político respeitadíssimo; por outro, uma mulher misteriosa que tenta enganar o tédio de modo sofisticado. Nesta história sobre um triângulo em que há dois homens que sentem uma proximidade inesperada ainda antes de descobrirem que já partilharam mais do que uma mulher, a surpresa é o facto de a personagem típica da mulher adúltera entediada ter afinal uma personalidade bem diferente das habituais Madames Bovary e Annas Kareninas. Devido à complexidade da história e ao carácter inesperado de certas situações, os espectadores poderão recordar um filme como Madame de… (Max Ophüls, 1953), em que também há um casal com uma relação pouco convencional. Tanto em Erotikon como em Angel, temos personagens que inicialmente parecem corresponder a determinados estereótipos, mas depois se individualizam pelas suas escolhas. Por não ser só irónico ou satírico, Angel é um filme muito melhor, mas continua a ser divertido ver Erotikon mais de cem anos depois da sua estreia, e não só por ser considerado a matriz das comédias de alcova de Hollywood da década de 1920; aliás, o próprio Stiller emigrou da Suécia para a América seis anos depois deste filme, embora da sua curta carreira além-Atlântico não conste uma única comédia.

5 de junho de 2022

Annette

Que Leos Carax gosta da grandiosidade e do artifício é algo que a sua filmografia, apesar de esparsa (apenas seis longas-metragens em trinta e sete anos), já demonstrou abundantemente. O seu último filme, Annette (2021), gravado na televisão e visto esta semana, confirma isso mesmo, e também a capacidade deste realizador de se reinventar: trata-se do primeiro filme falado em inglês e do primeiro musical da sua carreira. Mais do que um musical clássico, podemos falar em filme-ópera: o enredo, excessivo e inverosímil, é indissociável da encenação, também ela excessiva e repleta de efeitos visuais feéricos. Os protagonistas são um casal composto por um humorista (Adam Driver) e uma cantora (Marion Cotillard), que acaba por morrer num acidente de barco por culpa da negligência e brutalidade do marido. Na parte final do filme, ganha importância uma terceira personagem (Simon Helberg), um maestro que chegara a estar envolvido romanticamente com a cantora e que é contratado pelo viúvo para acompanhar as digressões da filha, Annette, uma bebé com capacidades vocais e melódicas prodigiosas. Como todos os filmes que apostam no excesso e na inverosimilhança, o ridículo espreita a cada esquina. O trabalho de realização de Carax passa por assumir aquilo que o filme tem de bizarro e disparatado, mas consegue evitar que este resvale para a palermice e para a arbitrariedade, graças a um conjunto de escolhas inteligentes. Citemos apenas duas. Em primeiro lugar, a maneira como gere as transições entre as canções – sempre uma questão delicada em qualquer musical –, por meio de diálogos quase naturalistas, mas com trechos melódicos e ritmados, sabiamente doseados, que favorecem a fluidez com as restantes cenas. Em segundo lugar, a opção de representar a bebé Annette por meio de uma marioneta é muito feliz, porque concentra todo o conteúdo fantástico e antinaturalista do filme num único objecto, o que equilibra o resto do enredo e as outras personagens, que, apesar dos desvarios e exageros, são dotadas de paixões e fraquezas humanas. As canções de Annette são compostas e interpretadas pelos Sparks, uma banda com décadas de carreira que foi recentemente objecto do documentário The Sparks Brothers (2021), realizado por Edgar Wright – por coincidência o autor de Last Night in Soho (2021), o filme de que falámos na semana passada. Os dois membros dos Sparks, os irmãos Ron e Russell Mael, são os argumentistas do filme, o que ajuda a explicar a coerência entre a banda sonora e a história, que dependem simbioticamente uma da outra. Annette não pretende transmitir qualquer mensagem moral, política ou outra. É um filme fiel ao espírito primordial do cinema, indissociável da intenção de deslumbrar e impressionar, mas não o faz através de truques ou artimanhas, nem tenta ser mais inteligente nem mais tortuoso do que o espectador. Na sua desmesura e artificialidade, este filme é aquilo que promete ser desde o seu arranque, assente num extraordinário prólogo em plano-sequência que inclui todos os actores, o realizador e os Sparks. Estes interpretam a canção “So May We Start”, onde se diz: «We've fashioned a world, a world built just for you/ A tale of songs and fury with no taboo».