27 de novembro de 2022

Ruído Branco

Visto no LEFFEST, Ruído Branco (Noah Baumbach, 2022) adapta o romance de Don DeLillo com o mesmo título, acompanhando o quotidiano de uma família (chefiada por uma Greta Gerwig e um Adam Driver de meia-idade), que, devido ao derrame de uma substância tóxica (ou à sua simulação), tem de sair de casa para proteger a vida. Apesar de se basear num livro publicado nos anos oitenta e de a acção se situar nessa década, pode ser descrito como um filme da pandemia, na medida em que, de acordo com o próprio Baumbach, foi concebido durante essa fase, em que, como estas personagens, vivemos um período quase apocalíptico e tivemos de nos confrontar com a nossa própria mortalidade. Não sabendo se alguma vez as pessoas poderiam voltar às salas de cinema, Baumbach reagiu dando total liberdade à imaginação, sem qualquer preocupação financeira. O resultado é um filme barroco e grandioso, mais espirituoso, agressivo e carregado do que aqueles que fez antes. Para os que conhecem e gostam do Baumbach mais intimista, é uma grande surpresa, mas Ruído Branco é de tal modo avassalador, que não dá oportunidade ao espectador para sentir cepticismo. E é avassalador por vários motivos. Em primeiro lugar, por adaptar um romance visionário, que muitos consideravam inadaptável, explorando eximiamente os seus diálogos hiperintelectualizados, o humor negro, a perigosa proximidade entre teoria, ficção, simulação e realidade, o contágio entre as palavras e as coisas, e também o fascínio pelo excesso de informação, que muitas vezes conduz à desinformação. Em segundo lugar, por ser, mais do que uma adaptação hábil, um filme em que são trabalhados e assimilados, nem sempre de modo totalmente irónico, diversos modelos cinematográficos importantes, como filmes-catástrofe, filmes com perseguições de carros, filmes sobre o mundo universitário, ou filmes dos anos oitenta, destacando-se Spielberg e David Lynch como referências importantes. Saliente-se também que Baumbach costuma contar com a colaboração de um coreógrafo e, além da já famosa sequência final no supermercado, ao som da música dos LCD Soundsystem, Ruído Branco, com banda sonora de Danny Elfman, integra algumas características da tradição do musical, sobretudo graças aos diálogos e ao ritmo da narração. Talvez seja o filme mais americano de Noah Baumbach, porque se apropria de todas as tradições desse cinema, e até da própria noção literária de “Great American Novel”, para produzir uma obra que, ainda assim, continua a ser tipicamente baumbachiana, na medida em que é, acima de tudo, uma investigação sobre a ansiedade. Pensávamos que tínhamos perdido Noah Baumbach para a Netflix, mas, felizmente, este filme tem estreia prevista em sala, na segunda semana de Dezembro.

Outros filmes de Noah Baumbach no Cinéfilo Preguiçoso: Enquanto Somos Jovens (2014); Mistress America (2015).

Nota: na próxima semana não haverá actualização do Cinéfilo Preguiçoso, mas prevemos retomar o ritmo habitual na semana seguinte.

20 de novembro de 2022

Diário de Um Romance Passageiro

No cinema francês é costume falar-se muito. Tem sido uma característica imutável, de Renoir a Desplechin, passando por Rohmer, Pialat e muitos outros. No cinema de Emmanuel Mouret fala-se ainda mais, se possível, do que na esmagadora maioria dos filmes franceses contemporâneos. Essa prolixidade é muito mais do que uma questão de palavras por minuto de película: em Mouret, a comunicação verbal entre as personagens sobrepõe-se ao enredo e serve de contraponto a acções que não são mostradas ou que ficam por praticar. Em Diário de Um Romance Passageiro (2022), estreado recentemente nas salas portuguesas, as duas personagens principais passam quase todo o tempo a falar. Os diálogos servem para os protagonistas se conhecerem, depois do encontro fortuito numa festa, e permitem a sua aproximação sentimental, mas têm o efeito secundário de os desencorajarem de irem mais longe na sua relação, como se o fluxo verbal se convertesse em sucedâneo da acção ou da decisão que seria necessária para transformar uma ligação supostamente passageira num compromisso mais sério. Há momentos em que os desejos e receios não verbalizados parecem prestes a vir ao de cima. Mouret assinala-os de forma muito explícita, recorrendo a pausas estratégicas no fluxo verbal ou a grandes planos súbitos. São estratagemas formais pouco originais, próprios de um cineasta que não está obcecado com a inovação. Bem pelo contrário, ao longo da sua carreira, Mouret tem adoptado um registo clássico, mas apurando a arte de levar esse registo a extremos de requinte e complexidade, por detrás de uma aparência de banalidade. Isto seria impossível sem a participação de actores de excelência. Neste filme, em que há uma curiosa troca de papéis associados ao imaginário masculino e feminino, os protagonistas são interpretados por Sandrine Kiberlain, uma das actrizes mais inteligentes da sua geração, e por Vincent Macaigne, que tem vivido muito da sua persona desajeitada, desgraciosa e dada a caprichos, mas que apresenta aqui um desempenho contido e plenamente convincente. Emmanuel Mouret é um dos realizadores franceses no activo mais interessantes. É bom constatar que as suas obras vão tendo visibilidade em Portugal. Dos filmes do início da sua carreira, muitas vezes com o próprio realizador no papel principal, marcados pela pseudoingenuidade e por um sentido de humor minimalista, até aos mais recentes, cada vez mais depurados, Mouret propõe uma crónica subtil das confusões e contradições sentimentais que a vida em sociedade produz. De certo modo, todos os seus filmes poderiam intitular-se, como o anterior a este, As Coisas que Dizemos, as Coisas que Fazemos (2020), já que todos exploram a interacção conflituosa dos gestos e as palavras, que, no fim de contas, é a matéria-prima do cinema.
 
Outros filmes de Emmanuel Mouret no Cinéfilo Preguiçoso: As Coisas que Dizemos, as Coisas que Fazemos (2020), Caprice (2015).

13 de novembro de 2022

Uma Bela Manhã

Desta vez, o Cinéfilo não foi nada preguiçoso. Na Festa do Cinema Francês, viu não só Frère et Sœur (Arnaud Desplechin, 2022), mas também, cerca de trinta minutos depois, Uma Bela Manhã (Mia Hansen-Løve, 2022). Nem sequer houve tempo para jantar, mas valeu totalmente a pena, porque são dois filmes excelentes – e muito corajosos, cada um à sua maneira. Desplechin não hesitou em enfrentar dramaticamente as forças negras e negativas que ligam e separam algumas pessoas, realizando um filme de uma intensidade e tensão impressionantes, também por abdicar de propor qualquer explicação narrativa para o conflito no centro do enredo. Mia Hansen-Løve aborda de frente um tema importantíssimo para todos nós, mas que não tem sido muito explorado no cinema: a reacção dos filhos perante a velhice, a doença e a morte dos pais. Enquanto o filme de Desplechin se desenvolve num plano quase mítico, o de Hansen-Løve, como é típico da obra da realizadora, situa-se na vida quotidiana da protagonista, Sandra Kienzler (Léa Seydoux), uma tradutora-intérprete que é filha de Georg Kienzler/Pascal Greggory, um professor de filosofia a quem é diagnosticada uma doença neurodegenerativa rara. Estamos habituados a que nos filmes de Hansen-Løve a vida continue, por muito difícil que isso seja: Sandra tem de trabalhar, andar de transportes públicos, ser mãe e resolver uma ligação sentimental problemática, enquanto lida não só com a dor e o luto antecipado causados pela doença do pai, mas também com as questões práticas associadas a este problema (por exemplo, a transferência do pai para diferentes lares temporários, ao sabor dos ditames da burocracia e das listas de espera). O alívio cómico do filme é assegurado pela mãe da protagonista (Nicole Garcia), com as suas aventuras no activismo e nas manifestações parisienses. Todo este contexto é abordado com uma honestidade desarmante e sem o menor sentimentalismo: a dada altura, a protagonista explica que encontra mais o pai nos livros dele do que no corpo afectado pela doença. Léa Seydoux é uma actriz tão requisitada no cinema actual, que às vezes, à semelhança do que aconteceu com alguém como Jeanne Moreau em determinada fase da sua carreira, nos cansa um pouco, mas neste filme tem uma prestação absolutamente inesquecível, conseguindo um equilíbrio entre o estoicismo e a racionalidade da personagem, por um lado, e as emoções que esta nem sempre consegue reprimir. A própria realizadora explicou que escolheu Pascal Greggory porque, sendo um actor rohmeriano e portanto associado às palavras no cinema, lhe interessava ver como ele resolveria o problema de uma personagem que perde as palavras; o histrionismo seria uma solução fácil, mas, felizmente, não estamos no cinema americano. Desplechin e Hansen-Løve são dois realizadores que, mesmo tendo um guião idêntico, fariam um filme totalmente diferente. Ambos, no entanto, mostram que trabalhar questões próximas da autobiografia ou da autoficção é, não um exercício solipsista e ocioso, mas sim usar o cinema como instrumento de verdade para reflectir sobre os assuntos mais importantes.

Outros filmes de Mia Hansen-Løve no Cinéfilo Preguiçoso: Éden (2014); L'Avenir (2016); Maya (2018); A Ilha de Bergman (2021).

6 de novembro de 2022

Frère et Sœur

A Festa do Cinema Francês vai na 23.ª edição. O Cinéfilo Preguiçoso acha que este evento poderia ser mais atraente se a escolha dos filmes se baseasse na qualidade e na originalidade – e menos numa lógica de representatividade que gera uma programação bem distribuída por géneros, mas deixando de fora alguns dos cineastas franceses mais interessantes. Há excepções, contudo: em particular, qualquer filme de Arnaud Desplechin. Em Frère et Sœur (2022), depois de alguns filmes recentes um pouco afastados do seu registo, reencontramos temas habituais na carreira deste realizador, como os conflitos familiares e o mundo do teatro. O eixo principal do enredo é a relação de ódio e afastamento radical entre dois irmãos: Alice, uma actriz (Marion Cotillard), e Louis, um escritor (Melvil Poupaud). Apesar de o filme incluir numerosos flashbacks, o motivo deste ódio nunca é explicado. O cinema está repleto de enredos sobre rivalidades e disputas no seio familiar, mas é raro que as motivações não sejam reveladas. Livres da necessidade de darem explicações, os argumentistas (Julie Peyr e o próprio Desplechin) constroem um filme que se desenvolve num plano quase abstracto, com aproximações fugazes à mitologia, à tragédia e a tabus religiosos. Mostrar motivos para a hostilidade entre Alice e Louis poderia satisfazer cognitivamente o espectador, mas, quase inevitavelmente, diluiria a impressionante intensidade deste filme. Essa intensidade sente-se desde a cena inicial: o velório do filho de Louis, uma das tragédias que, a par da lenta agonia dos pais do par protagonista, vítimas de um acidente de viação, fornece um contraponto trágico à frivolidade da zanga entre os irmãos. Esse contraponto, aliás, é aqui uma constante, e também isto é típico de Desplechin, que não só gosta de incluir pormenores burlescos para evitar que a gravidade faça soçobrar os seus filmes, como também o faz com uma inteligência notável. Outra imagem de marca do realizador é a tendência para adoptar um tom menor e aplicar cortes bruscos nas cenas que, nas mãos de outro, seriam tratadas com solenidade e dramatismo, e provavelmente redundariam em pathos gratuito. Mais do que contar uma história, Frère et Sœur mostra-nos um grupo de personagens com percursos de vida trilhados ao sabor de caprichos, energia vital descontrolada e egoísmos. O ódio nasce e desvanece-se, há uma reconciliação, mas sem que este trajecto coincida com uma evolução moral compatível com aquilo que a sociedade, e o cinema, consagram como convencional. Desplechin prefere estar atento à energia vital e às contradições das suas personagens a servir-se delas para construir narrativas dotadas daquela solidez edificante que muitos dos seus pares visam – entre os quais muitos realizadores representados na Festa do Cinema Francês. Frère et Sœur é um dos melhores filmes dos últimos vinte anos de um dos maiores cineastas contemporâneos.
 
Outros filmes de Arnaud Desplechin no Cinéfilo Preguiçoso: Trois Souvenirs de ma Jeunesse (2015), Os Fantasmas de Ismaël (2017), Roubaix, Misericórdia (2019), Traições (2021).