17 de julho de 2022

A Mamã e a Puta

É sintomático que, em plena era digital, numa altura em que estamos expostos a uma profusão pletórica de imagens, sons e textos à distância de um clique, a redescoberta de um filme esteja tão dependente dos esforços para recuperar aquela que, durante muito tempo, era a única cópia em circulação. Saúda-se, obviamente, a iniciativa de restaurar e disponibilizar a obra completa de Jean Eustache, um daqueles criadores mais ou menos marginais que a cultura francesa produz com abundância e que são quase sempre mais interessantes do que os que recebem a unção da grande imprensa e das entidades estatais. A Mamã e a Puta (1972), uma das duas longas-metragens que Eustache realizou na sua curta carreira, adquiriu uma reputação sólida apesar da sua escassa visibilidade. O filme mostra um triângulo amoroso composto por um jovem ocioso (Alexandre/Jean-Pierre Léaud), a sua companheira (Bernadette Lafont) e uma enfermeira (Françoise Lebrun) que ele conhece por acaso e com quem se envolve. Este triângulo reproduz fielmente aquele que o próprio Eustache viveu com Catherine Garnier, com quem rompeu a ligação por causa de uma enfermeira. Garnier, a quem o filme (onde trabalhou como figurinista) é dedicado, suicidou-se pouco depois da estreia. Acrescente-se que a própria Françoise Lebrun tinha partilhado a vida com Eustache antes disso. O espectador fica com a sensação de espreitar a vida íntima do realizador, e a sua reacção dependerá inevitavelmente da maneira como reage a este exercício de quase-autobiografia levado ao extremo. É inegável que A Mamã e a Puta tem méritos e aspectos muito interessantes. Mencione-se, em particular: o uso da música (sempre em som directo, geralmente proveniente do gira-discos ao lado da cama onde se passa uma grande parte da acção); o uso das palavras, uma logorreia que serve sucessivamente de instrumento de persuasão, desabafo ou simplesmente pretexto para preencher o tempo; o retrato de uma Paris (em particular o bairro de Saint-Germain-des-Prés) indiferente ao desencanto e tédio típicos daqueles que vivem em plena ressaca da euforia dos anos 60. O principal problema deste filme é soar demasiado a um exercício de cinismo e manipulação. Até se acredita que Eustache quisesse acima de tudo exorcizar os seus demónios e não justificar-se, mas A Mamã e a Puta torna o espectador refém de uma empreitada que parece consistir em tentar transformar os caprichos e as canalhices de Alexandre em arte, e, desse modo, esquivar-se aos julgamentos de valor que seriam inevitáveis no mundo real e que o próprio protagonista aplica aos que o rodeiam, entre citações literárias e cinematográficas para embelezar a situação. O cinema e a literatura estão repletos de personagens amorais e manipuladoras, mas que só se tornam interessantes quando deixam de ser meros repositórios de caprichos imaturos, o que não é o caso aqui: o desenlace, em que Alexandre aceita casar-se com a enfermeira, mostra aquilo que muito provavelmente não passará de mais um falso recomeço num ciclo eterno de ligações e rupturas. E não se trata, sublinhe-se, de julgar o realizador (o que não caberia no âmbito desta coluna) nem a sua persona cinematográfica. É um facto: julgamentos éticos sobre comportamentos de personagens são, quase sempre, exercícios fúteis. O problema é que A Mamã e a Puta é dominado pelas escolhas e conduta sinuosa de Alexandre, e é pouco aquilo que resta se abdicarmos de as julgar. O espectador sente-se como um amigo do protagonista que este tivesse encontrado numa esplanada e que fosse obrigado a escutá-lo. A arte declinada na primeira pessoa tem estes riscos: nem toda a gente é muito interessante, por isso pode ser conveniente que a obra não dependa tão absolutamente dos detalhes da vida e do esquema mental de um só indivíduo.