2 de outubro de 2022

À Luz do Sol

Ultimamente, as estreias em sala não têm andado cativantes. Esta semana, depois de dar uma vista de olhos ao arquivo de filmes gravados em televisão, o Cinéfilo Preguiçoso decidiu ver À Luz do Sol (René Clément, 196o), a primeira adaptação ao cinema do romance The Talented Mr. Ripley, de Patricia Highsmith (1955). Neste romance, Highsmith cria aquele que viria a ser o seu herói mais famoso, Tom Ripley, uma personagem amoral e maleável, capaz de assumir várias identidades, e dotada de inúmeros talentos, entre os quais o de ser uma máquina criminosa eficiente. Como em Strangers on a Train, livro de Highsmith que em 1951 Hitchcock adaptara ao cinema, neste primeiro volume da série dedicada a esta personagem há uma atracção homoerótica mais ou menos subterrânea que acaba por se traduzir num crime: Ripley, um rapaz pobre e aparentemente com pouco potencial, é enviado a Itália pelos pais de Dickie Greenleaf com a missão de o fazer regressar aos Estados Unidos, mas acaba por o matar, apesar do fascínio que sente por ele. Nesta altura, Highsmith já era uma escritora conhecida, mas sem grande prestígio literário. René Clément, trabalhando com Paul Gégauff, argumentista que também colaborou com Éric Rohmer em O Signo do Leão (1962), adopta uma atitude condescendente em relação ao livro e universo de Highsmith, com o objectivo de «limar» aquilo que considera as inconsistências e imperfeições do texto: acrescenta umas poucas personagens e cenas para «dar contexto», suaviza a questão da atracção homoerótica, transformando-a num triângulo amoroso e, no fim, sugere que Ripley será punido pelos crimes cometidos. Já se percebeu entretanto que Patricia Highsmith é uma escritora que não será esquecida, ao contrário de muitos dos seus contemporâneos considerados mais importantes naquela época. Se o filme de René Clément continua a ser visto, é porque, por um lado, não conseguiu escamotear totalmente o universo da escritora e, por outro, expressou bem a atmosfera de ócio e luxo das temporadas que alguns americanos passavam no estrangeiro, também graças ao director de fotografia Henri Decaë e à cor das paisagens italianas. Obviamente, outro elemento decisivo para o facto de alguns considerarem À Luz do Sol uma obra de culto é a presença magnética (e a interpretação convincente) de Alain Delon, que este filme transformou numa estrela. Ainda assim, é preciso salientar que os protagonistas de Clément são bem mais desastrados, grosseiros e apalhaçados do que os de Highsmith. O Talentoso Mr. Ripley de Anthony Minghella (1999), um filme muitíssimo subestimado pela crítica quando estreou, não só é mais fiel ao espírito da escritora como também assenta na prestação talentosa de um trio de actores à altura das personagens: Matt Damon, que, no papel de protagonista, consegue apagar-se e neutralizar-se de um modo impressionante para uma estrela americana; Jude Law, talvez no seu melhor papel de sempre; e Philip Seymour Hoffman, exímio enquanto personagem snob e detestável, mas com classe. Para quem não conheça o livro de Patricia Highsmith e a adaptação de Minghella, À Luz do Sol, embora pareça preso de mais à sua época, capta habilmente o contraste entre o carácter idílico da paisagem italiana e a atmosfera ambígua e desconfortável da história. Os momentos mais conseguidos são aqueles em que acompanha o olhar e os passos meticulosos de Ripley/Delon sem o julgar. Infelizmente, nem sempre consegue suspender o moralismo e, do ponto de vista artístico, essa falha é fatal.