19 de novembro de 2023

O Assassino

Em O Assassino (David Fincher, 2023), temos uma personagem nitidamente fincheriana, mas que se descobre protagonista de um enredo irónico, baseado numa banda desenhada francesa (escrita por Alexis “Matz” Nolent e ilustrada por Luc Jacamon), com laivos jarmuschianos, relacionados com o acaso e os limites do controlo. Sobre o protagonista (interpretado por Michael Fassbender), que foi comparado com a personagem de Alain Delon em O Samurai (Jean-Pierre Melville, 1967), sabemos que é um homem que gosta de se confundir com um turista alemão, com várias identidades mas sem grande psicologia, e que optimiza todos os seus passos e rotinas para ser uma máquina de matar eficiente e cumprir o dever. No início do filme, num misto de teledisco, anúncio publicitário e Janela Indiscreta, seguimos o seu olhar, a música que escuta e as suas palavras em voz-off, enquanto vigia um prédio e uma rua em Paris. O Assassino raramente fala com outras personagens, mas tem um monólogo interior obsessivo e repetitivo que, com as canções dos Smiths que ouve constantemente, o ajuda a concentrar-se nas tarefas a desempenhar. Depois de cometer um erro, no entanto, o seu discurso deixa de ser congruente com os acontecimentos que vemos desenrolar-se, apesar de ele continuar a repetir o conjunto de regras pelas quais rege o seu comportamento. Seguimos o seu percurso vertiginoso por várias cidades dos Estados Unidos e pela República Dominicana, onde tem residência e até uma companheira. Neste percurso, tenta regressar ao ponto de partida e retomar as rotinas normais da sua profissão, para poder voltar a ser uma personagem tipicamente fincheriana. Dividido em capítulos e com uma banda sonora original sinistra dos excelentes Trent Reznor e Atticus Ross, O Assassino tem um pouco da literariedade de Se7en (1995), um pouco da ironia de Clube de Combate (1999), um pouco do carácter obsessivo e do interesse pela investigação das personagens de Zodiac (2007) e Millennium (2011), e um pouco da tensão verbal de A Rede Social (2010). Ao mesmo tempo, mostra o avesso destes filmes, na medida em que assume uma vertente metacinematográfica em que o próprio Fincher parece sugerir que, por muito perfeccionistas que os realizadores e os assassinos sejam, durante a rodagem ou a execução há coisas que correm mal e os filmes podem ser simplesmente uma correria para avaliar e corrigir estas situações. Em muitos aspectos, aliás, é possível que O Assassino seja o filme mais conceptual deste realizador, apesar de aparentemente acompanhar apenas a história de um profissional competente, que se considera uma personagem menor. Seria também interessante estudar a maneira como a longa experiência de Fincher como realizador de telediscos influenciou a estética de O Assassino, que combina a plasticidade imediata e a superficialidade inerente a este meio com a vertente reflexiva sobre a construção de um filme e a tensão entre o controlo e a inevitabilidade dos imprevistos.