Na primeira cena de A Quimera (Alice Rohrwacher, 2023), Arthur (Josh O’Connor) acorda num compartimento de comboio que partilha com umas personagens femininas de ar invulgar, que lhe lembram efígies etruscas. A suspeita sobre a vertente fantasmagórica do protagonista instala-se logo aqui. Não sabemos bem se Arthur está vivo; nunca está parado; não encaixa bem em lado nenhum. É um arqueólogo com um talento sobrenatural para identificar a localização de túmulos etruscos subterrâneos em que os mortos têm uma espécie de enxoval que os acompanhará na outra vida. Quando Arthur sente o mal-estar que indica a presença de um túmulo, a imagem vira-se ao contrário, como se os espectadores tivessem acesso ao seu modo de ver. As aventuras de Arthur com o grupo de ladrões de túmulos de que faz parte são entrecortadas por recordações de Beniamina, sua parceira desaparecida. A Quimera não é um filme narrativo. Depois da morte, não há narrativa, só ausência de coordenadas temporais. Se há histórias neste filme, terão de ser os espectadores a compô-las a partir do caos das conversas circunstanciais, das expressões das personagens, de pormenores inesperados, dos frescos desmaiados nas casas, das folhas caídas nas florestas, dos objectos roubados e das canções através das quais o grupo de ladrões se retrata. Em muitos momentos, sentimos uma espécie de sobrepovoamento dos planos, com um excesso de sons e detalhes. Rohrwacher compara Arthur com um herói mitológico, na medida em que, em vez de psicologia, tem um destino – talvez os espectadores que o acompanhem no seu imprevisível percurso em direcção às trevas possam aprender com ele alguma coisa sobre si próprios. Com ele, a realizadora leva a cabo o seu próprio percurso pelo cinema italiano e pela história do seu país, não hesitando em apropriar-se de certos elementos arqueológicos do cinema de Fellini, Rossellini e até Pasolini, para realizar um filme sombrio e absolutamente pessoal e único. Já se falou da possibilidade de A Quimera formar uma espécie de trilogia com os anteriores O País das Maravilhas (2014) e Feliz como Lázaro (2018), mas a realizadora prefere compará-los com o tríptico de um altar. Os três filmes têm em comum o retrato de um grupo ou família, que, à margem da sociedade, se entrega a actividades invulgares. O Cinéfilo Preguiçoso escreveu sobre os filmes anteriores de Rohrwacher em tom de elogio convicto, mas é preciso dizer que A Quimera se distingue pela riqueza visual e pela liberdade com que segue o percurso errático de Arthur e das outras personagens, entre as vicissitudes do quotidiano, as numerosas camadas de história e a memória cinéfila.