1 de outubro de 2017

Transe


Tem-se instalado uma certa tendência para fazer crer que um bom argumento é aquele que submete o espectador a truques, armadilhas e reviravoltas infindáveis, revelando-lhe gradualmente a verdade sobre os factos narrados. Os Suspeitos do Costume (1995, realização de Bryan Singer, argumento de Christopher McQuarrie) foi talvez o filme que mais ajudou a lançar essa tendência, que se presta aos abusos mais irritantes, mas também a variações fascinantes e engenhosas (veja-se, por exemplo, alguns filmes de David Mamet). Transe (2013), de Danny Boyle, visto esta semana em DVD, encaixa-se perfeitamente nesta categoria. O enredo gira em torno de um assalto a uma casa de leilões e das consequências da amnésia de Simon (James McAvoy), um funcionário, cúmplice dos criminosos, que sofre uma agressão durante o assalto e se esquece do lugar onde escondeu a tela de Goya roubada. Para recuperar a memória de Simon, o bando recorre aos serviços de uma hipnoterapeuta (Rosario Dawson), que depressa revela saber muito mais sobre o caso do que se pensaria à primeira vista. A ideia de construir um thriller baseado na evocação de memórias obliteradas pelo trauma não é destituída de interesse. Infelizmente, Boyle faz questão de gastar a sua energia a usar cada plano para supostamente demonstrar virtuosismo e ousadia formal, em vez de aproveitar as potencialidades da ideia de base. Transe é o exemplo perfeito de um filme que se confunde com um longo número de prestidigitação e cujo objectivo parece resumir-se a trocar as voltas ao espectador. As personagens são exploradas de forma artificial, os actores trabalham em piloto automático e os clichés do filme de gangsters estão bem presentes, se bem que camuflados pelo aparato visual e por várias camadas de pretensa sofisticação. Para cúmulo, a associação ao tema da arte é extremamente ténue e parece existir apenas para conferir uma frouxa caução cultural: em vez de um quadro de Goya, o objecto escondido poderia ser um diamante ou um caderno com uma fórmula secreta, sem que o resto de filme sofresse alterações de maior. É curioso notar que, dois anos depois de Transe, Danny Boyle realizou Steve Jobs (2015), filme muito mais consistente e interessante. Sem dúvida que o facto de ter Aaron Sorkin como argumentista ajudou um bocadinho. Saber escolher os colaboradores é tão, ou mais, importante do que ter talento.