18 de julho de 2021

Bem Bom

O cinema português tem pouca tradição de filmes biográficos. É um género complicado, em grande parte devido à necessidade de equilibrar a verdade dos factos e as exigências da narrativa sem ferir as susceptibilidades dos biografados e dos que lhes são próximos. A realizadora Patrícia Sequeira, que já fora responsável por Snu (2019), parece apostada em contrariar esta tendência. O filme Bem Bom (2021), sobre a formação e o percurso ascendente das Doce, revela profissionalismo e competência mas vai além disso: sente-se claramente a paixão e a empatia por esta banda que, criada como um projecto de editora, alcançou um sucesso fulgurante nos anos 80 em Portugal. O trabalho dos actores é muito bom, sem pontos fracos que valha a pena referir, e é graças a isso que as cenas que retratam os primeiros tempos do grupo resultam tão bem: a mistura de afinidades e fricções entre os quatro elementos da banda fica bem clara. Outro dos aspectos positivos do filme é o uso das canções, feito na justa medida para realçar a importância das escolhas musicais no sucesso das Doce, mas sem sobrecarregar o filme. Porém, Bem Bom perde força quando, sobretudo na parte final, tenta tornar explícitas, por meio de monólogos ou diálogos algo artificiais, algumas leituras sociológicas mais duvidosas. Será que as Doce foram um factor decisivo na evolução dos costumes da sociedade portuguesa? Será que foram pioneiras do feminismo? Talvez se possa desenvolver argumentação nesse sentido, mas não pondo na boca de personagens dos anos 80 considerações declamatórias que nos parecem pouco plausíveis quase quatro décadas mais tarde, em retrospectiva. Se as Doce foram um fenómeno de popularidade, isso deveu-se essencialmente ao talento e dedicação das cantoras e à sagacidade de Tozé Brito e daqueles que estiveram por detrás da criação do grupo, que souberam perceber a evolução dos gostos musicais da sociedade portuguesa. Em vez de injectar argumentos contemporâneos nos diálogos, talvez tivesse sido mais eficaz explorar o interessante contexto dos anos 80 em Portugal, e não só meros ecos fugazes deste, como a boçalidade dos espectadores dos concertos ou o boato miserável que implicou uma das artistas. Para concluir, é preciso dizer que, sem enveredar pelo saudosismo, Bem Bom mostra mais uma vez por que razão a música dos anos 80 é objecto de uma fúria revivalista que não dá sinais de esmorecer: mesmo as canções escritas a régua e esquadro para os tops tinham uma espontaneidade, intensidade e frescura que nenhuma década posterior conseguiu reproduzir.