Esta semana o Cinéfilo Preguiçoso foi ao cinema para ver A Voz Humana, curta-metragem de Pedro Almodóvar (2020), complementada por uma entrevista de Mark Kermode ao realizador e a Tilda Swinton, protagonista do filme, em que se dá também uma breve, mas inesquecível, aparição do gato do realizador. Aproveitando, o facto de estar disponível no YouTube, viu também a adaptação de Rossellini da mesma peça de Jean Cocteau, que em 1948 estreou como primeira secção do filme O Amor, tendo Anna Magnani como protagonista. O filme de Rossellini, preso no quarto e no rosto em sofrimento de Anna Magnani, segue fielmente a peça de 1930 de Cocteau e concentra-se em aprofundar uma só emoção. Quanto ao filme de Almodóvar, além de ser uma adaptação mais livre do texto original, explora outros espaços e outras emoções. Almodóvar parte de uma loja de ferramentas, seguindo depois para o impecavelmente decorado apartamento da protagonista, mas mostrando que este se situa num estúdio do cinema, de que ela sai no fim. Deste modo, sublinha as vertentes de construção, desconstrução e destruição daquele momento, salientando também a vertente mais teatral da relação que termina, bem patente no modo como Tilda Swinton vai experimentando e representando respostas e reacções falsas na conversa ao telefone com o ex-amante, tal como veste e despe roupas diferentes ao longo do filme. O facto de Tilda Swinton ser uma actriz fria e controlada que nunca se deixa totalmente dominar pelas emoções acrescenta novos sentidos ao texto, diversificando a amplitude emocional. Em contraste, o filme de Rossellini é mais claustrofóbico e monotemático, o que talvez o torne mais associado a um determinado estilo de representação típico do cinema italiano daquela época, e, portanto, mais datado também. Na entrevista que acompanha a curta-metragem, o próprio Almodóvar explica que esta personagem o interessa mais enquanto mulher moderna, capaz de resistir e de agir para escapar ao impasse emocional, e não enquanto mulher «submissa», lembrando também que se trata de uma figura que ele trabalhou em vários filmes, nomeadamente em A Lei do Desejo (1987) e Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos (1988). Recordamos também o excelente A Flor do Meu Segredo (1995), com uma protagonista que tem de lidar com o sofrimento do fim de uma relação. Por todos estes motivos, A Voz Humana funciona como súmula sofisticada de vários elementos da obra de Almodóvar. Pode ser um bom ponto de partida para quem nunca viu um filme deste realizador, desde que esses espectadores estejam cientes de que as coisas se descontrolam mais facilmente noutros filmes dele.