Na esperança de dissipar a impressão negativa deixada por Eva (1962), o Cinéfilo Preguiçoso estava desejoso de ver o filme que Joseph Losey realizou no ano seguinte e que foi transmitido recentemente por um canal de televisão. O Criado (1963), primeira de quatro colaborações entre Losey e Harold Pinter, é um filme que se diria concebido para contrariar as expectativas de quem o vê. No início, tudo indica que pretende explorar o tema tipicamente inglês da luta de classes, seguindo a relação entre um cavalheiro jovem (James Fox), suposto arquitecto, mas que parece viver uma existência de ócio, e o criado (Dirk Bogarde) que ele contrata para tomar conta da casa que acabou de comprar. Aos poucos, e sobretudo a partir do aparecimento da noiva do criado, instala-se um clima de tensão e manipulação psicológica e erótica que precipita uma ruptura breve, seguida de uma reaproximação que mostra até que ponto patrão e subordinado se tornaram dependentes um do outro. Nesta segunda secção, o filme transforma-se numa espécie de comédia sardónica sobre a relação doméstica de um casal. A parte final de O Criado sugere uma ambiguidade crescente na relação entre as personagens masculinas, com conotações homossexuais evidentes e uma dependência doentia, culminando numa cena de orgia que mostra a desagregação definitiva de quaisquer papéis ou relações sociais convencionais, numa glosa (irónica?) da noção convencional de que a diluição da distinção de classes só pode desencadear o caos. Sobram apenas o desejo, a raiva, a frustração e, talvez acima de tudo, o cansaço. O argumento de Pinter (que aparece numa cena curta, a conversar num restaurante) é notável. São numerosos os diálogos no limite do absurdo, sem outra função a não ser sublinhar a fragilidade da linguagem, por meio de tangentes ao assunto discutido pelas personagens. Seria, contudo, injusto atribuir ao argumentista o mérito exclusivo ou principal pelas qualidades de O Criado: a realização de Losey, longe do registo pretensamente dinâmico e livre de Eva, mostra grande rigor e eficácia, sobretudo na maneira como explora os espaços da casa onde se desenrola grande parte da acção e no modo como estabelece o contraste com os planos de exterior, que nos mostram uma Londres invernosa e estranhamente deserta. É curioso constatar que, apesar da enorme importância do texto e de ter um futuro prémio Nobel como argumentista, O Criado tem uma poderosa componente pictórica, de que é exemplo a atenção prestada a pormenores como o espelho convexo pendurado numa das paredes da casa, os ramos de flores ou a prateleira de especiarias. Apesar de desconcertante e, por vezes, frustrante, O Criado é um filme repleto de motivos de interesse, entre os quais o desempenho absolutamente magistral de Dirk Bogarde, que percorre subtilmente todos os registos, da subserviência à vulgaridade, sem nunca incorrer em exageros ou descontrolo.
O Cinéfilo Preguiçoso regressa em Setembro. Boas férias para todos!