16 de janeiro de 2022

Três Andares

Na primeira fase da sua carreira, Nanni Moretti fez filmes marcados pela exploração inteligente do registo de comédia ao serviço da sátira e da crítica sociológica e política. Esse registo, assim como o recurso à personagem de Michele Apicella, interpretada pelo próprio Moretti, foram abandonados depois de Abril (1998): os filmes que se seguiram, embora não estejam isentos de efeitos cómicos (particularmente Habemus Papam, de 2011), adoptam um tom grave que está nos antípodas, por exemplo, dos primeiros dois segmentos do genial Querido Diário (1993). Três Andares (2021), que passou recentemente pelas salas portuguesas e o Cinéfilo Preguiçoso viu esta semana no videoclube de uma operadora de telecomunicações, confirma esta tendência e pode ser aproximado a O Quarto do Filho (2001) e Minha Mãe (2015): em todos eles, os temas principais são as relações familiares e a maneira como estas são postas à prova pela perda ou pelo afastamento de um membro do círculo familiar, como efeito da morte, doença ou discórdia. Três Andares, que se baseia no romance do israelita Eshkol Nevo (é a primeira vez que Moretti filma um argumento adaptado de uma obra literária, se exceptuarmos Come Parli Frate?, de 1974, que parodia uma obra de Manzoni), descreve episódios vividos por três famílias que moram no mesmo prédio em Roma. Nos três enredos paralelos, as personagens fazem, de forma mais ou menos explícita, escolhas que condicionam e perturbam a coesão do núcleo familiar. Essas escolhas e acções (infidelidade conjugal, ruptura com um filho rebelde) são comuns a milhares de enredos de outros tantos filmes, séries e telenovelas, e, por mais que se faça um esforço nesse sentido, é difícil vislumbrar alguma originalidade ou cunho pessoal na maneira como estas histórias são contadas. Talvez por ser o mais ambíguo, o enredo protagonizado por Alba Rohrwacher, que envolve uma mãe assoberbada pela responsabilidade de cuidar da filha, pelas ausências do marido e por visões de um grande corvo negro, é o mais interessante. Três Andares não é um mau filme, e os seus méritos são evidentes: muito bom elenco, coesão narrativa, caracterizações psicológicas cuidadas. Contudo, não consegue dissipar a impressão de que tudo, da escolha do assunto ao registo solene, resulta de uma tentativa muito consciente de produzir um filme profundo, denso e consensual, onde não há lugar para a frivolidade nem para a ousadia formal. Não deixa de ser irónico constatar que, nos filmes em que Moretti/Apicella devorava um boião gigantesco de Nutella (Bianca, 1984), se atirava a uma piscina (Palombella Rossa, 1989) ou tecia considerações delirantes sobre política e urbanismo conduzindo a sua Vespa (Querido Diário), entre outras tropelias que eram frívolas só na aparência, conseguia ser tão ou mais profundo e incisivo do que quando se tenta inserir na tradição do melodrama familiar e se constrange a usar as ferramentas e o vocabulário que a caracterizam.
 
Outros filmes de Nanni Moretti no Cinéfilo Preguiçoso: Santiago, Itália (2018), Minha Mãe (2015).