13 de março de 2022

Diários de Otsoga

Era inevitável que a COVID-19 acabasse por ser incorporada nos enredos das séries e filmes produzidos a partir de 2020. Poucos cineastas o terão feito de forma mais interessante do que Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes, realizadores de Diários de Otsoga (2021), gravado num canal de televisão e visto esta semana. Em 22 secções apresentadas por ordem cronológica inversa, o filme mostra as actividades de uma equipa de filmagem que se instalou numa quinta da região de Sintra para levar avante um projecto centrado em três personagens, interpretadas por Carloto Cotta, Crista Alfaiate e João Nunes Monteiro. A subversão cronológica reflecte bem a distorção da percepção do fluxo do tempo que deverá ter sido comum a todos os que viveram os sucessivos confinamentos pandémicos. A exploração das vicissitudes inerentes às rodagens é um tema recorrente no cinema – recordem-se, por exemplo, A Noite Americana (François Truffaut, 1973) e O Estado das Coisas (Wim Wenders, 1982). Aliás, o próprio Miguel Gomes costuma integrá-lo nos seus filmes, sendo Aquele Querido Mês de Agosto (2008) o exemplo mais notório disso. Talvez seja deste filme que Diários de Otsoga está mais próximo, mas aqui, em vez do processo de descoberta dos costumes alheios e de integração num território vasto (aldeias da Beira durante as férias grandes), temos um grupo confinado pelas necessidades do trabalho e da pandemia, e obrigado a conviver e a adaptar-se a um espaço limitado. Os gestos de reconhecimento desse espaço, povoado por animais, árvores e objectos que exigem um esforço de familiarização, confundem-se com o processo criativo. Nos diálogos hilariantes entre os argumentistas e os actores frustrados, sobressai outro tema recorrente na obra de Miguel Gomes: a interrogação sobre a natureza das personagens da ficção. O processo que leva a que uma mulher ou um homem, pelas acções que executa e pelo facto de uma câmara registar as suas acções, adquira o estatuto de «personagem» é permanentemente questionado. Podemos admitir que a primeira cena de Diários de Otsoga, que é a última na ordem cronológica dos eventos, e que mostra aquilo que parece ser uma cena do filme dentro do filme (uma festa, um beijo, a sugestão de uma reacção de ciúme), indica que esse processo foi concluído com sucesso e que os três actores, assim como conseguiram construir um borboletário na quinta, sofreram a metamorfose implícita no contrato com o espectador de cinema e passaram a ser «personagens» de corpo inteiro, obedientes a um argumento, talvez inspirado no livro de Pavese que é mencionado a dada altura. Mas também é possível que se tenham libertado dos constrangimentos incómodos da equipa de filmagens e sejam apenas o Carloto, a Crista e o João, a fazerem os seus próprios gestos e a viverem as suas vidas. O que é mais extraordinário neste filme é a latitude de leituras que permite e a liberdade que transmite, apesar de ter uma estrutura tão rigorosa: deixar a interpretação em aberto e admitir que não é possível controlar tudo é um acto de coragem, de sensatez e de humildade. Além disso, Diários de Otsoga é um filme belíssimo, repleto de planos e detalhes que ilustram as fricções entre os intervenientes, a natureza e os artefactos de forma repetida, mas sem nunca se tornarem cansativos e gratuitos. Por tudo isto, e por outras razões que não cabem aqui, é um filme que, acima de tudo, respeita a inteligência do espectador. Quem dera que fosse possível dizer uma coisa semelhante sobre a maioria dos filmes.
 
Outros filmes de Miguel Gomes no Cinéfilo Preguiçoso: As Mil e Uma Noites: Volume 1, o Inquieto (2015), As Mil e Uma Noites: Volume 2, o Desolado (2015), As Mil e Uma Noites: Volume 3, o Encantado (2015).