O
terceiro volume de As Mil e Uma Noites (Miguel Gomes, 2015) começa com um
prólogo protagonizado por Xerazade, a narradora das histórias que dão corpo a
esta trilogia. Apesar de fluir demasiado ao sabor de ideias narrativas fugazes
e superficiais, esta secção possui uma componente auto-reflexiva interessante:
o cansaço de Xerazade e as dúvidas sobre se conseguirá continuar a aplacar
durante muito mais tempo a fúria sanguinária do rei Xariar põem em causa o
próprio dispositivo ficcional em que a trilogia assenta. Desgraçadamente, essa
fadiga e descrença parecem contaminar o resto do filme. Ao contrário dos dois
volumes anteriores, este é completamente dominado por uma única história (se
exceptuarmos o episódio breve e dispensável A Floresta Quente): a da
comunidade de passarinheiros que, entre Chelas e a Alta de Lisboa, se dedicam à
captura e ao treino de tentilhões que se defrontam em concursos de canto
renhidos. O registo, entre o documentário e a ficção, é aquele a que Gomes nos
habituou; os hábitos, rituais e disputas dos criadores são mostrados com detalhe
e empatia; não faltam momentos deliciosos, como a explicação sobre como a
antiga arte de ‘virar’ um tentilhão (isto é, ensiná-lo a cantar) beneficiou com
as novas tecnologias (CDs, MP3…). Porém,
o episódio arrasta-se muito para lá do interesse que consegue suscitar. Pior do
que isso: pela primeira vez nesta trilogia, a liberdade narrativa e a
criatividade, que chegam a ser intoxicantes nos volumes anteriores, dão lugar a
uma certa complacência. A ausência de ecos da situação política e social do
Portugal de hoje (os que existem são forçados, como a manifestação das forças
de segurança) contrasta também com volumes um e dois. Mas nada disto chega para
anular a impressão de que estas Mil e Uma Noites foram uma das aventuras mais
ambiciosas e loucas do cinema português dos últimos anos.