12 de março de 2023

Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles

Na edição mais recente da lista de melhores filmes de sempre que a revista Sight and Sound organizou, Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975), de Chantal Akerman (disponível no Filmin), ficou em primeiro lugar. Dando uma vista de olhos a esta nova lista, ainda sem a ter analisado a fundo, o Cinéfilo Preguiçoso fica com a sensação de que lhe falta alguma perspectiva histórica, na medida em que inclui títulos recentes que não temos a certeza se serão recordados no futuro (muitos dos quais realizados por homens) e ignora ou empurra para lugares secundários obras de realizadores há muito tempo importantíssimos para os cinéfilos em geral. Enquanto listas anteriores padeciam de uma reverência excessiva pelo cânone, destacando insistentemente filmes como Citizen Kane (1941) ou O Couraçado Potemkine (1925), esta privilegia a contemporaneidade e a diversidade. Numa lista em que receamos ver aparecer a qualquer momento um título ou outro da série Avatar, surpreende o facto de um filme tão «difícil» como o de Akerman ter ficado em primeiro lugar. Não vale a pena estarmos com paninhos quentes: Jeanne Dielman é um filme difícil de ver. Dura mais de três horas, tem poucos diálogos e documenta repetitivamente as rotinas de uma protagonista inexpressiva, com uma vida em que pouco acontece: a personagem principal dedica-se a actividades domésticas e prepara refeições enquanto ganha o seu sustento e o do seu filho recebendo homens que lhe pagam por sexo (atrás de portas fechadas). Já alguém disse que neste filme reina o «suspense do quotidiano»: de facto, continuamos a vê-lo na expectativa de perceber até que ponto a realizadora consegue aguentar a ausência de acontecimentos. É irónico que Jeanne Dielman tenha ultrapassado, no primeiro lugar da anterior versão desta mesma lista, um realizador que costuma ser descrito como «mestre de suspense». A questão é que continuamos a ver os filmes de Hitchcock não só para sabermos o que vai acontecer a seguir nas histórias que contam, mas sim tanto por motivos formais e visuais, como pela capacidade que têm de evocar questões que não estão imediatamente presentes na narrativa e nas imagens. E vemo-los (assim como aos filmes de outros realizadores que antes ocuparam os lugares cimeiros desta lista) com deslumbramento, esquecendo-nos de tudo o resto. O mesmo não acontece quando assistimos a Jeanne Dielman, que é um filme que só a posteriori se torna interessante, depois de um fim inesperado, quando começamos a pensar em todas as suas implicações e problemas. Tem sido descrito como «filme feminista», mas mesmo este rótulo parece simplificá-lo e empobrecê-lo. Jeanne não é bem uma simples «vítima do patriarcado»; dir-se-ia que escolheu aquela forma de vida e que está contente com ela, já que, até certo ponto, nada faz para a modificar. O que sabemos da sua história e dos seus antecedentes é demasiado escasso para permitir leituras sociológicas. Sem dúvida, o facto de este filme ocupar o primeiro lugar de uma lista em que antes se destacaram títulos tão diferentes traduz a tendência actual de valorização de critérios não estritamente estéticos na apreciação das obras de arte. O problema é que, enquanto os critérios estéticos nunca estão totalmente separados de outras considerações, os critérios não estéticos tendem a menorizar a vertente estética, acabando por privilegiar escolhas menos complexas e menos ricas. Não falta complexidade a este filme de Akerman, mas convém continuarmos a discuti-lo para percebermos se esta é inequivocamente cinematográfica e se os motivos não cinematográficos que o projectaram para a posição que ocupa nesta lista ampliam, interpretam mal ou prejudicam o seu valor cinematográfico. Será interessante não só conferirmos o lugar que ocupará nesta lista daqui a dez anos, mas também avaliarmos como esta distinção afectará a apreciação, no seu todo, da obra de Akerman, da qual constam filmes que, de um ponto de vista estético e artístico, estão mais alinhados com os critérios de valorização que a crítica privilegiou durante décadas, como, por exemplo, o extraordinário La Captive (2000). E esperemos também que daqui a dez anos haja mais mulheres a realizarem filmes, se quiserem – uma das melhores maneiras de combater a desigualdade é através da igualdade de oportunidades, que hoje ainda não existe.