19 de março de 2023

Fogo-Fátuo

Depois de Oslo, 31 de Agosto (2011), de Joachim Trier, o Cinéfilo Preguiçoso decidiu ver (em DVD) Fogo-Fátuo (1963), filme de Louis Malle baseado na mesma obra literária: Le Feu Follet (1931), de Pierre Drieu La Rochelle. As comparações entre as abordagens de Malle e de Trier são inevitáveis. Ambos os filmes se centram numa personagem que sai de um centro de reabilitação, passeia numa grande cidade e reencontra amigos; ambos descrevem uma trajectória de alienação, angústia crescente e aniquilação. Há pontos de contacto notórios: por exemplo, uma conversa com um antigo parceiro de vida boémia que entretanto formou família e assentou, dedicando-se à vida intelectual; uma cena em que o protagonista, sentado numa esplanada, observa os gestos e escuta as conversas de anónimos; uma festa. A principal diferença entre os dois filmes reside na maneira como a personagem, ao longo das poucas horas em que a acção se desenrola, se relaciona com as outras pessoas e com o ambiente que a rodeia. Enquanto o Alain de Fogo-Fátuo sofre de modo grandiloquente com a constatação progressiva do abismo que existe entre aquilo que deseja e o que o mundo lhe oferece, o Anders de Oslo, 31 de Agosto parece já ter feito há muito essa constatação e limita-se a cumprir as rotinas de socialização e retoma da vida normal que os outros esperam dele, sem ilusões em relação ao desfecho. Além disso, o filme de Malle desenvolve uma componente reflexiva, quase metafísica, e apresenta uma montagem dinâmica e complexa típica dos anos da Nouvelle Vague, ao contrário do filme de Trier, mais esparso e linear. Adivinha-se em Fogo-Fátuo uma maior afinidade com o estilo e as preocupações de Drieu La Rochelle e com uma abordagem filosófica e existencialista ao suicídio. Um ponto em comum entre os dois filmes é a importância do actor escolhido para o papel principal: Maurice Ronet (que, três anos antes, fora a primeira vítima de Tom Ripley em À Luz do Sol) consegue aqui um equilíbrio extremamente difícil entre a sobriedade e a capacidade de transmitir a fragilidade psicológica e o desespero crescente de Alain. Fogo-Fátuo pode ser uma excelente porta de entrada para quem queira descobrir a filmografia de Louis Malle, que se distingue por um eclectismo invulgar, mas também pela capacidade rara de conservar uma identidade artística bem definida ao longo das décadas, apesar da diversidade de formatos e temas. Saliente-se ainda, neste filme, a presença de Jeanne Moreau, num papel muito secundário, e a de um muito jovem Volker Schlöndorff, no cargo de assistente de realização. Curiosamente, foi também como assistente de Malle que Alain Cavalier começou a sua carreira (por exemplo, em Os Amantes). Traçar de forma exaustiva estas genealogias que configuram uma rede vasta de transmissão de saberes e influências seria um trabalho de historiografia gigantesco, mas fascinante.
 
Outros filmes de Louis Malle no Cinéfilo Preguiçoso: Os Amantes (1958); My Dinner With Andre (1981).