29 de outubro de 2023

Rostos

Fala-se muitas vezes de John Cassavetes como um dos realizadores mais influentes do século XX e como pioneiro do cinema independente norte-americano. Existem excelentes argumentos para sustentar ambas as afirmações, mas é interessante constatar que, à semelhança de outros cineastas descritos como pioneiros ou como estando à frente do seu tempo (Godard ou Vigo, por exemplo), Cassavetes foi mais longe do que qualquer um dos que podem ser considerados seus seguidores. É admissível que os seus filmes, de tão intensos e originais, suscitem um efeito intimidatório que se sobrepõe à admiração e vontade de emulação. Rostos (1968), visto esta semana em DVD, surgiu nove anos depois de Sombras (1959), tendo Cassavetes realizado, entre estes, dois filmes em que a sua liberdade criativa foi condicionada pelas imposições dos estúdios. Rostos, pelo contrário, é um filme absolutamente livre, tal como era Sombras. Há semelhanças entre os dois, como o predomínio de momentos narrativos isolados, em detrimento de um enredo, ou a aposta nos grandes planos. Enquanto Sombras nos mostrava personagens à procura de um lugar no mundo, sob vários pontos de vista (profissional, artístico, afectivo), em Rostos as personagens são mais velhas e estão instaladas na vida, vulneráveis a crises sentimentais que ocupam por completo as suas existências. Outra diferença importante é que a acção, em vez de se situar nas ruas de Nova Iorque e em locais públicos, se desenrola em interiores domésticos: a residência de Richard e Maria (John Marley e Lynn Carlin) e a casa de Jeannie (Gena Rowlands), uma prostituta de luxo que Richard frequenta. Ao contrário de outros filmes sobre temas semelhantes, Cassavetes não está aqui interessado em dissecar as razões por detrás da crise conjugal de Maria e Richard, nem em explorar os detalhes do processo de separação. Bergman, o Baumbach de Marriage Story (2019) e muitos outros seguiram esse caminho, antes e depois, mas Cassavetes concentra-se em mostrar a energia emocional, as infantilidades e os desabafos angustiados dos protagonistas. Apesar da impressão de improvisação e de ausência de estrutura narrativa, Rostos apresenta uma simetria muito sólida entre as trajectórias centrífugas dos membros do casal, à procura de companhia e validação junto de uma prostituta e de um gigolô (Seymour Cassel). Cassavetes possuía um talento raro para realizar filmes que nos parecem livres e quase documentais (e que, por sinal, não envelheceram nada), mas que dependem de um gigantesco investimento de técnica e inteligência. Naturalmente que nada disto seria possível sem o trabalho extraordinário com os actores. É interessante verificar que Carlin e Cassel foram nomeados para os Óscares por este filme (tal como o próprio Cassavetes, na categoria de argumento original) e que Marley recebeu o prémio de representação no Festival de Veneza de 1968, o que é notável para um filme independente, de orçamento muito baixo e ao arrepio de todas as normas e modas. Depois de rever Sombras e Rostos, fica-se a pensar: que filmes do último meio século, norte-americanos ou de outras cinematografias, nos deixam com uma impressão comparável de arrojo e independência? Não muitos.