Como se tem falado muito de Woody Allen a propósito da sua vinda a Portugal e da estreia de Golpe de Sorte, o Cinéfilo Preguiçoso decidiu rever Hannah e as Suas Irmãs (1986). É possível que a reacção de cada um a este filme dependa da idade com que o vemos. Muito jovens, rimo-nos com alguma crueldade das irresponsabilidades de personagens que nos parecem ter idade para terem juízo. Quando somos mais velhos do que as personagens, já não achamos tanta piada – continuamos a rir-nos, mas é por empatia e identificação. Em Hannah e as Suas Irmãs, as emoções, a energia e a paixão das personagens fazem explodir a narrativa em episódios e vinhetas. No cinema de Woody Allen, a banda sonora desempenha um papel bem mais importante do que parece. Em muitos dos seus filmes, a narrativa desenvolve-se aos soluços, pelas ruas da cidade ou no interior das casas, entre livrarias e a ópera. As personagens fazem escolhas irracionais, cometem erros, têm emoções que não conseguem controlar, traem-se umas às outras, voltam atrás, ou dão um salto inesperado para a frente. O jazz e a música clássica da banda sonora parecem, no entanto, vir de um tempo em que as coisas talvez não fossem tão complicadas. Há um contraste interessante entre as emoções e o desassossego das personagens, por um lado, e a possibilidade de satisfação e calma que só na música parece alcançável. Hannah e as Suas Irmãs acompanha dois anos na vida da família disfuncional das três irmãs referidas no título, filhas de um casal de actores (interpretados por Maureen O’Sullivan, mãe de Mia Farrow também «na vida real», e Lloyd Nolan) com um historial de infidelidades e abuso de álcool. Hannah (Mia Farrow) parece o eixo mais sólido da família, distinguindo-se das suas duas irmãs, mais instáveis e com carreiras e percursos menos definidos: Holly (Dianne Wiest), toxicodependente em recuperação, eterna aspirante a actriz e possível escritora; e a intensa Lee (Barbara Hershey), numa ligação aparentemente sem saída com um artista mais velho que se leva demasiado a sério (Max von Sydow). Ao longo do filme, contudo, vamos percebendo que nenhuma destas personagens está tão mal ou tão bem na vida como parece: a existência aparentemente perfeita de Hannah tem falhas, entre as quais um marido – Elliot/Michael Caine – que se sente atraído por Lee; as suas irmãs, por outro lado, são capazes de encontrar sozinhas soluções para os seus próprios problemas. Em torno desta família gravita também a personagem de Mickey (interpretada pelo próprio Woody Allen), ex-marido de Hannah e argumentista neurótico e hipocondríaco, constantemente à procura do sentido da vida. As suas preocupações com a possibilidade de morrer funcionam como um comentário irónico à agitação sentimental e profissional das outras personagens. A linha narrativa protagonizada por Mickey, apesar de parecer desligada do resto do argumento, acaba por se reintegrar no enredo principal de forma coerente no final do filme, recuperando uma ligação a uma das irmãs, em mais uma troca de casais. No seu livro de memórias, Mia Farrow relata que comentou com Allen que tinha achado que o guião era palavroso «mas não dizia nada», e que as personagens lhe pareciam auto-indulgentes, dissolutas e previsíveis. Uma das grandes qualidades de Woody Allen é precisamente a capacidade de fazer grandes filmes a partir desta matéria-prima de base. Dentro da sua filmografia, num tom tchekhoviano próximo, Setembro (1987), talvez por prestar a mesma atenção à vida familiar e ao interior de uma casa, é uma espécie de reverso sombrio e mais contido de Hannah e as Suas Irmãs. Maureen O’Sullivan ter-se-ia confessado surpreendida («chocada») pelas coincidências entre as relações das personagens de Hannah e as Suas Irmãs e as das pessoas próximas de Mia Farrow, mas o que é a ficção senão a realidade trabalhada?
Outros filmes de Woody Allen no Cinéfilo Preguiçoso: Broadway Danny Rose (1984); Setembro (1987); Irrational Man (2015); Café Society (2016); Roda Gigante (2017); Um Dia de Chuva em Nova Iorque (2019); Rifkin’s Festival (2020).