24 de março de 2024

O Ano Passado em Marienbad | Toute la Mémoire du Monde

O Cinéfilo Preguiçoso decidiu ver, em DVD, O Ano Passado em Marienbad (1961), de Alain Resnais, complementado pelo documentário Toute la Mémoire du Monde (1956), do mesmo realizador, disponível no YouTube. Saltam à vista algumas semelhanças entre os dois filmes. Em ambos, percorremos corredores austeros em lentos travellings e o cenário é mostrado de maneira a transmitir uma impressão opressiva, quase de cárcere. Tanto o hotel barroco da longa-metragem de 1961 como o edifício da Biblioteca Nacional, objecto do documentário de 1956, são filmados como se fossem buracos negros que absorvem e fixam a informação (os diálogos estéreis das personagens, os livros arquivados em estantes recônditas), e em ambos é esboçado um movimento centrífugo que contraria esse esclerosamento. Em O Ano Passado em Marienbad, a fuga das personagens principais está pendente dos esforços do homem para despertar uma recordação na mulher que a arranque à condição de personagem de uma peça que se repete, como se fosse um mecanismo accionado num passado distante. Em Toute la Mémoire du Monde, o movimento para fora coincide com a descrição dos procedimentos desencadeados pela requisição de um livro por parte de um leitor, num percurso inverso ao que transportou o livro do mundo exterior para a Biblioteca. Contudo, convém não levar demasiado longe estas comparações; em muitos aspectos, estamos perante filmes completamente diferentes. O documentário possui um alcance pedagógico e objectivo que o distingue nitidamente da construção ficcional abstracta filmada por Resnais a partir de um texto de Alain Robbe-Grillet. A colaboração entre escritor e cineasta é, aliás, uma das marcas distintivas que Resnais manteve durante a sua longa carreira: o trabalho sobre o texto, muitas vezes escrito de propósito para o cinema, e a tentativa, quase sempre bem-sucedida, de o converter num objecto cinematograficamente estimulante. Os exemplos são numerosos, mas talvez se possam citar, em jeito de ilustração, Hiroshima Meu Amor (1959), com Marguerite Duras, e Providence (1977), com David Mercer. O Ano Passado em Marienbad, que ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza, teve um impacto enorme nos meios cinéfilos da altura e, ao que consta, na sociedade em geral, pela dificuldade de se decifrar nele uma linha narrativa inequívoca. Seria possível, nos tempos que correm, um filme ser assunto de debate no espaço público, a não ser por um motivo escabroso ou colateral ao seu valor artístico? É de duvidar. Ao mesmo tempo, não podemos deixar de nos perguntar se a discussão foi tão intensa e generalizada como se afirma. A tendência para mitificar leva, por vezes, a exageros retrospectivos. Se nos limitarmos a olhar para o filme tal como chegou aos olhos contemporâneos, sessenta e três anos depois de ser realizado, constatamos que o rigor estético e intelectual e a ousadia de transpor o ideário do nouveau roman para o cinema continuam a fazer dele um objecto fascinante, que se presta a numerosas leituras e interpretações graças à sua riqueza, e não por culpa de indefinição e tibieza, como é muitas vezes (demasiadas vezes) o caso, noutros filmes.
 
O Cinéfilo Preguiçoso regressará depois da Páscoa. Boa pausa para todos.