Um dos momentos mais inesquecíveis de Vanya on 42nd Street (Louis Malle, 1994, disponível no YouTube) é o início: os actores/personagens percorrem as ruas movimentadas de Nova Iorque em direcção ao New Amsterdam Theater, num edifício abandonado na 42nd Street, para participarem numa espécie de representação informal da peça Tio Vânia, de Tchékhov. (A primeira vez que o Cinéfilo Preguiçoso viu este filme foi em Paris, num primeiro de Maio chuvoso de 2006. Como era Dia do Trabalhador, muitas coisas estavam fechadas, mas os cinemas continuavam a funcionar. Foi como se a escolha da sessão, o percurso até ao cinema e a espera na fila para a bilheteira também fizessem parte do filme.) Dentro do New Amsterdam Theater, os actores e a assistência, um grupo de convidados do encenador André Gregory, conversam descontraidamente – quando damos por isso, o que inicialmente parecia um diálogo de circunstância afinal já pertence à peça. Esta diluição de fronteiras entre vida e teatro é uma das características mais interessantes do filme de Louis Malle, que aqui adopta uma abordagem próxima da do documentário. Este filme nasceu quando o realizador assistiu a uma das representações informais que Gregory organizou desta peça, ao longo de cinco anos, em pequenos teatros ou outros espaços alternativos, às vezes até em apartamentos de amigos. Os actores de Vanya on 42nd Street (entre os quais se destacam Wallace Shawn, Julianne Moore, Brooke Smith, Larry Pine) conhecem tão bem o texto – uma adaptação de David Mamet, a partir de uma tradução literal de Vlada Chernomordik, que preserva a agilidade dos diálogos sem perder a sua literariedade – que parecem situá-lo na sua própria vida. A peça de Tchékhov, apesar de ser sobre russos do século XIX que vivem num sítio isolado e se interrogam sobre o sentido das suas vidas, poderia ser sobre aqueles nova-iorquinos que lhe dão vida num teatro em que não podem usar o palco porque umas ratazanas roeram umas cordas – ou até sobre nós. Aliás, é interessante notar como este texto de Tchékhov, graças à concentração da acção em determinado espaço, ao entrecruzamento das relações das personagens e aos confrontos verbais entre elas, tem funcionado como fonte de inspiração cinematográfica. Só no Cinéfilo Preguiçoso, já foi referido a propósito de Setembro (Woody Allen, 1987) e de Drive My Car (Ryusuke Hamaguchi, 2021). Há alguns pontos em comum entre este Vanya on 42nd Street e o excelente My Dinner with Andre (1981), em que Louis Malle já tinha trabalhado com André Gregory e Wallace Shawn: em ambos se filmam conversas entre personagens que reflectem sobre a sua própria vida. Tanto a conversa entre Gregory e Shawn como a representação da peça, a que assistimos em tempo real, podem transmitir a ilusão de que a câmara é usada como mero dispositivo de captação, num registo próximo do documentário. Com discrição e inteligência, Malle realizou estes dois objectos cinematográficos rigorosos e exaltantes, muito mais complexos e trabalhados do que à primeira vista pode parecer.
Outros filmes de Louis Malle no Cinéfilo Preguiçoso: Os Amantes (1958); Fogo-Fátuo (1963).