14 de abril de 2019

A Pereira Brava


O Cinéfilo Preguiçoso costuma ver no cinema os filmes de Nuri Bilge Ceylan, mas, desta vez, por causa dos 188 minutos de duração de A Pereira Brava (2018) e também por não ter ficado muito convencido com Sono de Inverno (2014), procrastinou um bocadinho. Felizmente, ainda foi a tempo. A Pereira Brava é um filme sobre um recém-licenciado com pretensões a escritor que, terminada a licenciatura, se vê obrigado a regressar à casa dos pais na sua aldeia de origem, no Oeste da Turquia, enquanto tenta arranjar maneira de publicar o livro que escreveu e de prosseguir com a vida. Parece haver um contraste acentuado entre as ambições elevadas de Sinan e a realidade sórdida da aldeia, onde se destacam os problemas familiares causados pelo vício do jogo do pai. O contraste e a discussão são, aliás, as formas que Sinan escolhe para se relacionar com o mundo. Pressentimos que não deve ser um grande escritor observando-o em interacção com diversos interlocutores: a mãe, antigos colegas de escola, dois imãs, e (numa das cenas mais cómicas e mais conseguidas) um autor consagrado que, atormentado por um princípio de enxaqueca, não mostra grande paciência para o aturar. A intuição de ele ser um mau escritor não assenta, ao contrário do que Sinan pensa, no facto de ele “não gostar de pessoas” – há grandes escritores que nunca “gostaram de pessoas” – nem no facto de o seu primeiro livro não vender, mas sim na sua preferência por tópicos grandiosos abordados de modo abstracto, na sua vontade de moralizar, na superioridade irónica com que agride os outros e nas falhas de compreensão que revela. A maior ironia do filme, talvez suspensa nos momentos finais do reencontro com o pai, relaciona-se precisamente com a cegueira do seu protagonista. Sinan demora muito a perceber não só a complexidade da figura do pai (que vê como totalmente negativa, apesar de o filme não o retratar apenas desse modo), mas também as semelhanças do pai com ele próprio, ao ponto de, tal como o pai trai todos para poder continuar a jogar, também ele cometer actos moralmente condenáveis para poder publicar o primeiro livro. Do mesmo modo, parece escapar-lhe a complexidade do seu espaço de origem, que também nós, através do seu ponto de vista, vemos como feio, mesquinho e pejado de pistas falsas – até à cena final, altura em que a sua beleza se torna evidente. Nesta secção do filme, percebemos também que se Sinan não integrar todas as dimensões contraditórias do universo que herdou e tem de recriar (na vida e na obra), corre o risco de se tornar, tal como o pai, um falhado que teve de desistir dos seus próprios sonhos. Ostentando alguns dos traços distintivos do cinema de Ceylan, como conversas muito longas entre personagens antipáticas e insatisfeitas que testam a paciência do espectador, filmadas quer em paisagens esmagadoras quer em interiores claustrofóbicos, ou os contrastes – enganadores – entre o elevado e o mesquinho, o belo e o miserável, a grandeza e a derrota, A Pereira Brava, embora não propriamente agradável de ver, é um filme que, pelo modo  comovente como expressa a complexidade que Ceylan sempre tentou captar, não desmerece a comparação com outros bons filmes deste realizador, como Climas (2006) e Era Uma Vez na Anatólia (2011). Os sons da picareta dentro do poço que continuamos a ouvir mesmo durante o genérico final sugerem, no entanto, que Ceylan percebe que fazer cinema, escrever um livro e viver podem ser tarefas árduas e muitas vezes inglórias. Será que este poço vem de Moonfleet (Fritz Lang, 1955), outro filme em que a relação pai/filho está em questão? E o cão “perdido”, que depois parece reaparecer em vários lugares estranhos, não virá de Stalker (Andrei Tarkovsky, 1979)?

Na próxima semana não haverá Cinéfilo Preguiçoso, mas voltaremos a seguir à Páscoa. Boa pausa para todos.