20 de outubro de 2019

Archipelago


Em Archipelago (2010), a excelente segunda longa-metragem da realizadora britânica Joanna Hogg, mantêm-se um dos temas (as férias) e um dos actores (Tom Hiddleston) da primeira, Unrelated (2007). Não é difícil percebermos o interesse desta realizadora pelo tópico em questão: durante as férias, os papéis habituais das pessoas suspendem-se e elas têm de lidar consigo mesmas e com as outras sem estas máscaras. Ainda assim, Unrelated e Archipelago são dois filmes muito diferentes. Enquanto o primeiro se situava em Itália, girando em torno de um grupo de personagens relativamente numeroso, entre incidentes e aventuras desinteressantes, o segundo passa-se nas ilhas Scilly (ou, em português, ilhas Sorlingas), a sudoeste de Inglaterra, numa paisagem com cores, clima e luminosidade muito distintos, pontuada por uma banda de som riquíssima, com ruídos de chuva, vento e canto de pássaros. Em Archipelago, a acção concentra-se – até à claustrofobia – num grupo de cinco personagens, cada uma das quais isolada nas suas próprias preocupações, como as ilhas de um arquipélago. Graças à chuva, temos mais cenas de interior, o que permite a Joanna Hogg explorar cuidadosamente a distribuição destas personagens pelo espaço, com uma encenação que, por vezes recordando certas fotografias de Jeff Wall, traduz visualmente o tópico da consciência de classe que tanto parece marcar as preocupações da família central do filme, constituída por uma mãe com dois filhos já adultos. Entre tentativas de sublimação de culpa, por um lado, e uma atitude de superioridade condescendente ou assumidamente mal-educada, por outro,  cada uma das três personagens lida com esta consciência de classe de um modo que as distingue e aproxima, sobretudo no que toca à relação com a cozinheira contratada para tratar das refeições familiares durante duas semanas. Qual figura da arte holandesa do século dezassete, a personagem da cozinheira, quase sempre de pé, enquanto os outros estão sentados, aparece geralmente ocupada com tarefas comezinhas e surpreendentemente concretas (por exemplo, temperar e arranjar um coelho, depenar um faisão e retirar-lhe o papo, cozer lagostas), frequentemente descritas ao pormenor nos diálogos. Em contraste com estas actividades, que raramente receberam tanta atenção no cinema contemporâneo, está sempre o ócio das três personagens da família e, para lá das discussões destas, as conversas que têm com o professor (interpretado pelo artista Christopher Baker, que não é actor profissional) contratado para ensinar pintura à mãe e à filha durante estas férias. Entre o mar, as nuvens, as rochas, as formas estranhas das árvores e os túneis de ramos, estas lições e conversas sobre cor e luz funcionam também como uma espécie de explicação dos pensamentos e objectivos da realizadora sobre o acto de filmar. Todos estes aspectos adquirem mais importância do que aquele que, no início, parece ser o tema principal: a intenção do protagonista de integrar uma missão humanitária em África. Em Archipelago, então, continuamos a encontrar uma atenção irónica a pequenos dramas humanos, mas cada vez mais enquadrando-os em espaços que expõem implacavelmente o seu carácter secundário em relação à paisagem mais cósmica e mais aberta em redor.