15 de março de 2020

Amour Fou


Visto em DVD, Amour Fou (2014), da realizadora austríaca Jessica Hausner, aborda o último período da vida do escritor Heinrich von Kleist, em particular as suas tentativas de encontrar uma parceira para um pacto suicida. Neste filme, Kleist é sempre mostrado como uma personagem singular, que sobressai nos salões burgueses onde é recebido. A sua postura hirta, as suas roupas e os seus diálogos intensos, dos quais transparecem a decepção em face da vida e o desejo de morrer, subvertem a ortodoxia doméstica feita de paz conjugal, serões musicais e o vaivém dos criados, constante e preciso como uma coreografia, mas Amour Fou é percorrido por uma ironia subtil assente em mal-entendidos a que mesmo a figura de Kleist não escapa. Um dos méritos do filme é caracterizar Kleist como aquilo que ele foi – um corpo estranho na sociedade e na paisagem literária contemporânea – sem necessidade de nos mostrar os seus antecedentes ou de fazer referências extensas à sua obra. A propósito de Barbara, o Cinéfilo Preguiçoso discutiu recentemente a necessidade de escolha que se impõe em qualquer filme de cariz remotamente biográfico: admitir que o público conhece a personagem, ou adoptar uma atitude pedagógica, mostrando diversos acontecimentos da vida do biografado, com o risco de transformar o filme no equivalente visual a uma entrada de enciclopédia. Apesar de serem filmes profundamente diferentes, Barbara e Amour Fou têm em comum o facto de escolherem claramente a primeira opção. Só ocasionalmente é feita referência à obra de Kleist, e quase sempre para sugerir alguma afinidade entre ele e Henriette Vogel, a mulher que, convicta de padecer de uma doença fatal, aceita acompanhá-lo na morte. Henriette afirma compreender que a personagem principal da novela A Marquesa de O possa amar o homem que a violou, ao contrário da família próxima, que repudia essa ideia com horror; da mesma forma, a sua relação com Kleist parece cheia de contradições. Apesar de acabar por aceitar a sua proposta fatal, o filme sugere que o patamar de comunhão espiritual pura que o escritor almejava nunca é atingido. Isto é reforçado pelo facto de Henriette parecer hesitar imediatamente antes de ser alvejada junto ao lago Wannsee, e também, com ironia amarga, pela revelação de que afinal não sofria de qualquer doença. Do ponto de vista estético, Amour Fou faz lembrar muito mais os interiores holandeses do século XVII do que o período romântico. É impossível também não pensar na maravilhosa adaptação de A Marquesa de O, de Rohmer (1976), pelo sentido pictórico e pela rigorosa gestão do espaço da cena. Para concluir, Amour Fou, sem ser um filme particularmente inovador, é uma variação inteligente do filme biográfico que nos deixa com expectativas sobre o trabalho futuro de Hausner.