Enquanto andava à procura de outro filme, o Cinéfilo Preguiçoso reparou por acaso num DVD de uma caixa Víctor Erice com filmes que ainda não tinha visto. Um deles era a excelente curta-metragem La morte rouge (2006); o outro, Paris-Madrid, Idas e Voltas, um episódio da série lendária Cineastas do Nosso Tempo sobre Erice, realizado por Alain Bergala (2010). Em La morte rouge, o realizador espanhol recorda o primeiro filme que viu no cinema: The Scarlet Claw (Roy William Neill, 1944), uma aventura de Sherlock Holmes protagonizada por Basil Rathbone e Nigel Bruce, baseada livremente em O Cão dos Baskervilles. Na memória de Erice, este filme torna-se um objecto estranhíssimo que se confunde não só com o espaço em que é visto e projectado (um antigo casino de San Sebastián povoado de fantasmas), mas também com os momentos em que Erice, durante a infância, o recordou antes de dormir, ouvindo alguém com insónia tocar piano no andar de cima. Erice explica que, na sala de cinema, pensou que o que estava na origem do pacto que os espectadores faziam para ficarem em silêncio no escuro talvez tivesse alguma coisa a ver com a força misteriosa que, no início do filme, as personagens acham que toca o sino depois de degolar animais e pessoas, uma força descrita como “algo” e não “alguém”, e que, por não ser ninguém, podia ser todos. Quanto ao episódio de Cineastas do Nosso Tempo, não se pode dizer que seja particularmente entusiasmante (Erice é muito, muito melhor a filmar do que a falar), nem que se destaque por alguma circunstância distintiva, como acontece em Brisseau – 251 rue Marcadet, que gira em torno não do discurso que o realizador tinha preparado, mas do que diz espontaneamente quando pensa que ainda não está a falar para a câmara. Apesar disso, neste episódio Erice destaca uma noção de cinefilia associada à “família que escolhemos” e traça a genealogia da sua obra, salientando os filmes Ladrões de Bicicletas, de Vittorio de Sica, O Rio Sagrado, de Renoir, Os 400 Golpes, de François Truffaut e os realizadores Robert Bresson e Abbas Kiarostami. Em todos estes realizadores encontramos uma atenção especial à infância, período interessante para Erice na medida em que as crianças vivem tudo como mito, como se todas as imagens fossem capazes de explicar o mundo. Com este interesse pela infância, Erice articula uma noção de orfandade, de procura de um pai ausente, que, na sua perspectiva, caracteriza não só várias personagens da sua obra, mas também o cinema espanhol em geral e a geração da Nouvelle Vague que esteve na origem do conceito moderno de cinefilia. Víctor Erice realizou três longas-metragens extraordinárias e é uma pena que não faça mais filmes. Em Paris-Madrid, Idas e Voltas, nunca é questionado directamente sobre a aparente escassez da sua obra, mas algumas das suas intervenções ajudam a explicar esse facto: Erice reivindica-se como espectador e amante de filmes e encara a cinefilia como uma relação próxima e integral com o cinema que abrange vários níveis. O exercício da crítica, da reflexão e da pedagogia, em que ele é pródigo, assumem importância equivalente à da realização e alimentam-se mutuamente. Mesmo que isso seja decepcionante para os admiradores que gostariam de ver mais filmes dele, a obra de Erice deve ser vista na multiplicidade das suas facetas, e estes dois filmes, graças à ênfase que dão à memória e à reflexão, contribuem para isso.