11 de outubro de 2020

A Mulher Canhota

 

Na semana em que o Prémio Nobel da Literatura foi anunciado, o Cinéfilo Preguiçoso decidiu ver um filme realizado por Peter Handke, galardoado em 2019: A Mulher Canhota (1978), transmitido na RTP2 há algum tempo. A génese do filme é singular: Handke começou por escrever o guião e só mais tarde o reescreveu como novela, levando muitas pessoas a pensar, erradamente, que o filme é uma adaptação directa desta. A novela (publicada em Portugal pela Difel) segue o filme (e também o guião, presume-se) com muita fidelidade, resistindo à tentação de explorar as motivações das personagens através das reflexões de um narrador, monólogos interiores ou outros estratagemas literários. Nesta, como noutras obras suas (independentemente do meio), Handke recorda-nos que estados de espírito complexos e voláteis podem esconder-se por detrás dos gestos simples e banais que são mostrados ou descritos. A superficialidade é ilusória: as personagens revelam muito mais sobre elas do que em filmes ou livros onde a fúria introspectiva, a urgência de explicar motivos e intenções, transformam a obra num exercício psicologizante enfadonho. Em A Mulher Canhota, a personagem principal, Marianne (Edith Clever), anuncia ao marido, Bruno (Bruno Ganz), que teve uma “iluminação”, na sequência da qual o expulsa de casa, passando a viver sozinha com o filho. O filme mostra-nos momentos da vida de Marianne após a separação: passeios pelos arredores de Paris, retoma da vida profissional como tradutora (que belas são as cenas em que a personagem tenta encontrar as palavras certas para verter um conto de Flaubert para o alemão, e que contraste com a maneira canhestra como este ofício é representado em Os Tradutores), encontros com o editor, com o pai, com estranhos. Não há linha narrativa nem uma evolução que não seja cronológica: tudo começa em Março, depois chega Abril; a transição do Inverno para um tímido princípio de Primavera, frio e húmido, é filmada com uma delicadeza de cortar o fôlego por Robby Müller, o director de fotografia habitual de Wim Wenders (que produziu este filme). No mundo – recorda-nos Handke – estamos reduzidos a apreender aquilo que os nossos sentidos nos transmitem. A vida é um conjunto de acções e acontecimentos tão simples como beber um copo de água ou despir um casaco de peles, o cinema é a arte de mostrar essas acções sem impor significados que elas não podem ter, mas sem obliterar a angústia e a esperança que estão por detrás. (Apetece dizer, antecipando capítulos futuros da longa colaboração entre Handke e Wenders, que seriam precisos anjos para romper a opacidade do mundo físico e escutar a dor interna de cada um.) Uma palavra final para esses actores geniais, Clever e Ganz, que dois anos antes tinham protagonizado o inesquecível A Marquesa de O (1976), de Rohmer, onde uma outra “iluminação” reunia a Marquesa e o Conde, num tortuosíssimo percurso, inverso ao de Marianne e Bruno.
 
Alguns filmes que resultaram da colaboração entre Wim Wenders e Peter Handke: Os Belos Dias de Aranjuez (2016) e A Angústia do Guarda-Redes no Momento do Penalty (1972).