13 de fevereiro de 2022

Someone's Watching Me! | Femme Fatale

O Cinéfilo Preguiçoso estava com saudades das double bills que a Cinemateca costuma programar aos sábados. A deste fim-de-semana emparelhou Someone's Watching Me! (1978), filme de John Carpenter realizado para a televisão, e Femme Fatale (2002), de Brian De Palma. O que une estes dois filmes é, por um lado, o uso abundante de estratégias narrativas e efeitos estilísticos típicos do thriller, em ambos os casos levado a cabo com inteligência e personalidade; e, por outro, o tema do voyeurismo, mais explícito no primeiro, mais estilizado e abstracto no segundo. Someone's Watching Me! centra-se numa realizadora de televisão recém-chegada a Los Angeles (Lauren Hutton) que começa a ser assediada por telefonemas e encomendas, enquanto a sua vida é vigiada por meio de um telescópio manipulado por um indivíduo misterioso, instalado no prédio vizinho. A filiação com Janela Indiscreta (1954), de Hitchcock, é óbvia, mas pode fazer-se também a aproximação com o delirante Hi, Mom! (1970), do próprio DePalma, onde o tema da vigilância de um prédio já era usado, com De Niro no papel de um observador mais inepto e ganancioso do que psicopata. O filme de Carpenter contém pormenores deliciosos: por exemplo, a certo ponto o voyeur oferece à vítima um telescópio, convidando-a a inverter os papéis, num requinte de perversidade que acaba por se voltar contra ele. Também Femme Fatale recicla muito do que os realizadores de série B, thrillers e heist movies criaram ao longo da história do cinema. Ao contrário do filme de Carpenter, que está bastante longe do género que o tornou famoso (embora a maneira como filma o prédio, quase como se fosse uma entidade maléfica, remeta para o cinema de terror), o de De Palma representa-o muito bem enquanto cineasta e ilustra a sua tendência para se inspirar nos autores que admira, por vezes no limite do pastiche. Femme Fatale começa por mostrar um roubo de jóias durante o Festival de Cannes, focando-se depois no destino de Laure (Rebecca Romijn-Stamos), que trai os restantes membros da quadrilha e fica com o saque. Os códigos tradicionais do género são explorados, manipulados e distorcidos por meio de uma montagem extremamente precisa e cerebral, sem esquecer algumas reviravoltas, num argumento sempre nos limites da autoparódia. À semelhança de outras obras de De Palma, em particular Snake Eyes (1998), Femme Fatale é um filme sobre o olhar humano e sobre a forma como a informação visual pode ser manipulada, sendo o realizador sempre o manipulador supremo. Nas mãos de muitos realizadores contemporâneos, este poder de manipulação é esbanjado em tentativas, levadas a patamares entediantes, de contrariar sistematicamente as expectativas do espectador. Tanto De Palma como Carpenter mostram inteligência e respeito suficientes pelos espectadores e pela memória cinéfila para não permitirem que estes jogos redundem na missão de provarem que são mais espertos do que quem assiste ao filme. Por estes motivos, o Cinéfilo Preguiçoso divertiu-se com esta double bill e ficará atento às próximas.
 
Outros filmes de Brian De Palma no Cinéfilo Preguiçoso: O Fantasma do Paraíso (1974), Blow Out (1981).