2 de abril de 2023

Verão 1993

Depois de ver Alcarràs (2022), o Cinéfilo Preguiçoso ficou com vontade de descobrir Verão 1993 (2017), a primeira longa-metragem de Carla Simón, que está disponível na plataforma Filmin. Marcadamente autobiográfico, Verão 1993 acompanha os primeiros meses da nova vida de Frida, uma órfã de seis anos que foi acolhida pelos tios numa casa rural do interior da Catalunha. Filmes como este, centrados na aprendizagem e nos traumas de uma personagem infantil, implicam quase invariavelmente resolver um dilema complicado: mostrar o ponto de vista da criança sem que este se torne predominante a ponto de gerar uma sucessão de impressões na primeira pessoa, sem espaço para o olhar do espectador adulto. Verão 1993 resolve este dilema com sensibilidade e equilíbrio, também graças ao trabalho da actriz principal, Laia Artigas, que transmite de forma notável tanto angústia como uma manha nascida do desespero, usada como arma num mundo que sente como alheio e vagamente hostil. Os melhores momentos do filme são aqueles em que Frida aparece como um corpo estranho e selvagem, um enxerto num microcosmos que funcionava bem e onde o lugar desta criança não é evidente. Coisas tão simples como trazer da horta uma couve, em vez da alface que lhe tinha sido pedida, mostram este problema de adaptação que nem o carinho nem a atenção dos pais adoptivos conseguem mitigar. É curiosa a maneira como Carla Simón explora algumas características do cinema fantástico: em duas ocasiões, Frida põe em risco a integridade de Anna, sua irmã adoptiva e prima de três anos, devido a uma mistura de inconsciência ou incapacidade de distinguir entre o bem e o mal, por um lado, e de algo que, por outro, faz lembrar a perversidade sobrenatural de certas personagens dos filmes de terror. Contribuem para esta impressão de fantasmagoria tanto a casa, isolada no meio da vegetação, como as poucas cenas passadas na vila, onde vemos desfiles folclóricos de bonecos grotescos. A atmosfera misteriosa do filme relaciona-se também com o facto de a morte dos progenitores de Frida só ser explicada no fim, e mesmo assim sem toda a clareza. Igualmente notável é a forma discreta como o filme termina: a conversa em que Frida fica a saber como morreu a mãe e uma brincadeira com o tio que redunda em lágrimas são cenas banais, mas dão a entender de forma eficaz que uma fronteira foi transposta e que, por fim, a criança começa a cavar o seu nicho naquele universo. Verão 1993 é um filme aparentemente menos ambicioso do que Alcarràs, porque isento de preocupações sociológicas explícitas e muito centrado numa única personagem, mas, como este, mostra uma segurança e uma inteligência assinaláveis. Será interessante ver se, no futuro, Carla Simón continuará a explorar a sua memória pessoal e as dinâmicas familiares e territoriais, ou se irá procurar desafios diferentes.
 
Como de costume nesta altura do ano, o Cinéfilo Preguiçoso vai fazer uma pausa durante a próxima semana. Boa Páscoa para todos.