10 de novembro de 2024

Megalopolis

Seria interessante fazer uma história do cinema centrada nos projectos cuja concretização demorou décadas a acontecer: como surgiu a ideia; que circunstâncias impediram a sua realização imediata; que alterações sofreu enquanto os anos iam passando e o realizador construía a sua filmografia... Os exemplos não faltam: O Estranho Caso de Angélica (Manoel de Oliveira, 2010) ou Histoire de Marie et Julien (Jacques Rivette, 2003), entre outros. Consta que a ideia do filme que viria a ser Megalopolis (Francis Ford Coppola, 2024) surgiu no final dos anos 70. Nunca saberemos qual teria sido o resultado se Coppola tivesse conseguido levar a cabo este projecto nessa altura. Só sabemos que o filme que finalmente estreou e dividiu a crítica, quase meio século depois, tem uma pujança que parece nascer do entusiasmo associado à génese de uma ideia nova. Megalopolis é um filme em que se sente o peso da experiência de Coppola e a sua insaciável paixão pelo cinema, mas não é um testamento nem um balanço. Estabelece um paralelo entre a Roma antiga e uma metrópole chamada Nova Roma que, naquele que parece ser um distópico futuro próximo, assiste ao confronto entre um presidente da câmara bem-intencionado, mas demasiado pragmático, e um arquitecto visionário que acredita ser capaz de transformar a distopia em utopia, através dos seus grandiosos planos de urbanização e do material mágico que inventou. É admissível que Coppola tenha pretendido defender ideias em que acredita, mas não são o confronto ideológico nem as alegorias históricas que fazem o mérito desta obra. Megalopolis deixa a impressão de ser um filme planeado e rodado com o entusiasmo e desplante de um principiante, mas com a segurança técnica e estilística própria de um veterano rodeado de excelentes técnicos de confiança. Pela maneira como copia, reinventa e subverte inúmeros planos, temas e figuras de estilo vindos da ficção científica, do peplum, do melodrama e de tantos outros géneros, com uma saudável ausência de medo do ridículo, Megalopolis resulta numa grandiosa homenagem ao cinema que também é uma homenagem ao poder criativo dos visionários, na linha de Tucker – Um Homem e o Seu Sonho (1988). O choque de intenções e discursos entre o arquitecto Cesar Catilina (Adam Driver), o político (Giancarlo Esposito) e o banqueiro (Jon Voight) revela ambiguidades inquietantes: a liberdade para reconstruir uma cidade à medida dos seus sonhos torna o primeiro tão poderoso e vulnerável a tentações populistas como os outros dois. O desfecho de Megalopolis sugere, ainda assim, que só o gesto artístico de um visionário pode alterar o curso da história e contrariar a ganância e o conformismo. Podemos concordar ou permanecer cépticos; podemos achar que o talento de Cesar para deter o curso do tempo é próprio de um demiurgo ou um simples truque de feira. O que é impossível é ignorar a pulsão vital que atravessa este filme e não admirar a maneira como Coppola, na fase final de uma carreira tão rica e singular, olha decididamente para o futuro, ciente das incertezas e contradições da sua utopia, mas movido por uma fé tenaz na humanidade, como se percebe graças ao texto final, versão secular e apátrida do pledge of allegiance que muitas crianças são obrigadas a recitar nas escolas norte-americanas.
 
Outros filmes de Francis Ford Coppola no Cinéfilo Preguiçoso: The Outsiders (1983); Tucker Um Homem e o Seu Sonho (1988); Tetro (2009).