3 de julho de 2022

Tetro

Pouco entusiasmado com o panorama das estreias em sala, esta semana o Cinéfilo Preguiçoso optou por ver um filme previamente gravado num canal de televisão: Tetro (2009), de Francis Ford Coppola. Uma das coisas que saltam à vista quando se consulta a ficha técnica do filme é o facto de o argumento ser da autoria exclusiva do próprio Coppola e não se basear em qualquer obra literária, o que é extremamente raro numa carreira repleta de adaptações e colaborações com outros argumentistas. O enredo, em torno do reencontro em Buenos Aires de dois irmãos, filhos de um maestro famoso e autoritário, é bastante simples e semelhante a outros já vistos em inúmeros filmes e séries. A figura do pai dominador e do filho que prefere a fuga ao confronto são clássicas, assim como a dinâmica entre o irmão mais velho (Tetro/Vincent Gallo), rebelde mas protector, e o irmão mais novo (Bennie/Alden Ehrenreich), dividido entre a tentação de seguir o exemplo e a necessidade de se afirmar. Em Tetro – e esta é talvez a parte mais interessante da história – Bennie encontra e completa os escritos do irmão mais velho, abandonados no fundo de uma mala e redigidos em código. A peça que tinha ficado por acabar, talvez porque a sua conclusão implicava a revelação de um segredo de família, serve a Bennie para se aproximar do irmão e, ao mesmo tempo, para se afirmar e se integrar na comunidade onde este vive e trabalha. Ao forçar esse desfecho, Bennie dá também a Tetro a oportunidade de desbloquear a sua vida: revelar o seu segredo, ajustar contas com o pai e, talvez, tornar-se finalmente o escritor que aspira a ser. Tetro não passaria de um filme menor e de interesse medíocre se este argumento fosse filmado por alguém sem o talento e a experiência de Coppola, que parece ter concebido o enredo como pretexto não só para explorar memórias e temas recorrentes (recordem-se as relações familiares complexas na saga O Padrinho, recorde-se a relação entre Mickey Rourke e Matt Dillon em Rumble Fish, de 1983), mas também para desenvolver ideias visuais e estruturas narrativas. Os flashbacks, assim como os excertos de peças e do filme Os Contos de Hoffmann (1951), de Michael Powell (que Coppola se recorda de ver com o seu irmão, conforme declarou numa entrevista), instalam uma dimensão onírica e nostálgica que quebra o ambiente realista das cenas domésticas e de rua. Mencione-se ainda, como exemplo das numerosas mudanças de registo do filme, a sequência do festival literário, presidido por uma crítica literária famosa (Carmen Maura), onde Tetro obtém a consagração. Não havia nada na lógica narrativa que obrigasse a que o festival se realizasse no meio da imensidão da Patagónia, mas isso permite criar um ambiente efémero de road movie que torna Tetro ainda mais inclassificável. Apesar dos elementos autobiográficos e dos ecos de outros filmes, não é fácil compreender o que terá levado Coppola a querer filmar esta história, entre tantas outras, nesta fase da sua carreira em que o tempo para realizar os seus projectos começa a escassear. Mas talvez não haja nada para compreender. As últimas obras deste enorme realizador, tão diferentes entre si, têm uma coisa em comum: a liberdade de escolha de um criador que já não tem nada a demonstrar e não tem de prestar contas a quem quer seja.
 
Outros filmes de Francis Ford Coppola no Cinéfilo Preguiçoso: The Outsiders (1983); Tucker Um Homem e o Seu Sonho (1988).