14 de outubro de 2018

No Escuro do Cinema Descalço os Sapatos


Visto na RTP2, o documentário No Escuro do Cinema Descalço os Sapatos (Cláudia Varejão, 2016), pedindo emprestado um verso de Adília Lopes para o título, filma os bastidores da Companhia Nacional de Bailado. O preto e branco parece acentuar a condição preparatória das imagens, que, a partir do escuro, à margem das luzes do palco, captam ensaios, correcções, comentários sobre a dificuldade de certos movimentos, expressões de cansaço, dor e frustração, bem como alguns fragmentos de espectáculos, geralmente filmados a partir de ângulos inacessíveis a um espectador comum. Como no filme Ama-San (2016), encontramos uma atenção peculiar aos momentos de repouso e distracção do corpo de quem – bailarino ou mergulhadora – noutros instantes tem de desempenhar uma coreografia precisa. No Escuro do Cinema Descalço os Sapatos  é um documentário que, além de convocar a lembrança de outros filmes como A Dança, de Frederick Wiseman (2009), sobre Le Ballet de L’Opéra de Paris, ou certos momentos de Um Verão de Amor, de Ingmar Bergman (1951), recorda algumas imagens das artes visuais, como as bailarinas de Degas (frequentemente retratadas em ensaios, momentos de abandono ou na expectativa da entrada em cena iminente) e a série «As Avestruzes Dançarinas» de Paula Rego (1995). Deliberada ou não, a ligação a estas figuras de Paula Rego efectua-se através da relação dos corpos com o chão, complicada por todos os entraves que o peso e a gravidade podem impor. Em Cláudia Varejão, talvez a relação com o chão assuma menos antagonismo. Ao longo de todo o filme há muitos planos de pés e pernas – e também outros em que estes estão estranhamente ausentes, apesar de continuarmos a ver corpos. Uma das histórias mais impressionantes é a da bailarina que, ainda pequena, partiu os dois pés e, a partir daí, compreendendo o valor e a função desta parte do corpo, nunca mais na vida correu, «nem para apanhar o autocarro». Logo no início do documentário, ouvimos um bailarino/coreógrafo explicar que os pés estão assentes no chão, o torso está assente nas pernas, a cabeça está assente nos ombros e este percurso demonstra que a terra sustenta as ideias. Na mesma perspectiva, ter os pés bem assentes no chão ajuda a tornar claras as razões para nos movimentarmos, sendo esta compreensão essencial para tornar os movimentos nítidos e precisos. Tal como Ama-San, No Escuro do Cinema Descalço os Sapatos é um documentário não só sobre os limites do corpo, mas também sobre a beleza e as surpresas da sua superação.